Um dos
pequenos meninos
do meio do mundo
Martin Esquacre
(Para Elson Martins)
Aos nove anos, roubou um pacote em uma
agência bancária. Aquele menino pequeno escapuliu sem que fosse percebida
sequer a sua presença no Banco.
Desfez o pacote e abriu a surpresa: nunca
colocara entre os seus dedos tamanha quantidade de dinheiro.
Teve medo, mas esta bobagem passou
logo.
Deixou o dinheiro em um canto seguro.
Durante muitos dias hesitou entre
vários locais.
Escondeu, finalmente, atrás do altar
da velha igreja centenária, um prédio em ruínas.
Comprou uma calça comprida, a sua
primeira calça comprida, comprou sapatos, uma camisa amarela, um chapéu com
peninha.
Nos armazéns, comprava comidas antes
apenas imaginadas.
Quis comprar roupas no estilo das
roupas justas e bonitas dos heróis das revistinhas. Não encontrou. A sorte
estava do seu lado. Já despertava suspeitas
Um dia já adulto conseguiu satisfazer
seus sonhos de poder colocar um capacete no estilo dos seus fabulosos heróis do
espaço.
Esta foi a sua primeira grande
aventura, seu primeiro grande êxito.
Cidade pequena, seus gastos foram
notado.
Com um pouco de paciência e utilizando
de uma bem organizada campana, a polícia encontrou o dinheiro.
Os policiais nada mais lhe disseram
senão que iriam arrancar-lhe o saco fora se ele repetisse o que fizera.
O dono do pacote, encontrado no banco,
era um senhor gordo, grande, de pouca conversa. Acompanhou o interrogatório do
menino. Ao sair, tirou vinte cruzeiros do bolso e deu ao menino.
A partir desta primeira investida, a avó
e as tias concluíram que ele dava muito trabalho.
A tia de São Paulo opinou que deveriam
levá-lo para lá, teria escola, uma vida melhor.
“O ambiente seria outro, quaisquer
deslize ele seria levado a um reformatório”.
Esta tia não prestava, não valia nada.
O que ela queria com ele em São Paulo?
Sensibilidade aguçada, na
sobrevivência, pressentia que alguma maldade tramavam. Ele não podia era
acreditar que a vó se deixasse envolver naqueles planos.
Ela era, de fato, a sua mãe. Não podia
perder tudo o que ele tinha e tudo que ele tinha era a avó.
Se elas tramavam, o que ele devia
fazer? Parava de brincar, mas não conseguia imaginar que tipo de maldade elas
seriam capazes de cometer e assim se viu impedido de pensar mais alguma coisa.
Uma coisa ele não queria, era ser
surpreendido.
A surpresa veio, a avó deu a sentença,
ele iria para São Paulo porque era para melhor para ele.
No ônibus, a tia de São Paulo avisou
que ele ficaria na casa de Dora, uma outra tia. Desta tia ele não gostava
mesmo. As cidades passavam pelo ônibus, em cada parada o menino criava projetos
de fuga, sempre transferidos para parada seguinte.
Assim, chegaram na grande cidade
cinza.
A tia veio com uma conversa que ele
logo entendeu. A maldade era esta: ele seria abandonado na rodoviária sob a
alegação de que a tia buscaria a tia Dora para “buscá-lo”.
Não imaginara o quanto de covardia
aquela mulher pintada, cara lambuzada de cores vivas, abrigava.
Aceitou a proposta mesmo não
formulada. Entendia elas e ele não tinha medo. O desejo da tia de abandoná-lo e
o seu desejo de fugir chegaram a um acordo.
Doze anos e a liberdade conquistada
pelo abandono.
A tia falou, falou, falou muito. Não
escutava nada, queria que ela desaparecesse. Por fim, a tia abriu a bolsa e
tirou uma nota de cinquenta cruzeiros.
Aquela mulher feia, de cara suja,
aquela mulher má, desapareceu no meio do povo.
Na padaria, gastou boa parte do dinheiro
com doces e, depois, com passeios de ônibus.
Zerado, sem um tostão, aproveitou a
distração do cobrador do ônibus, pegou o que conseguiu e correu.
Conseguira sessenta cruzeiros. Gastou
do mesmo jeito.
Dormia dentro dos carros, entrando
pelas janelas forçando os vidros.
Num dia de muito frio, acordou com a
Kombi em movimento. No volante, careca discutia com a mulher ao lado. Ela quase
o flagrara. Em um sinal, abriu a porta da Kombi e deixou o casal paralisado no
susto.
Andando onde havia movimento, pois não
gostava de ruas paradas, chegou a um mercado. Observou alguns meninos roubando
frutas, bananas, laranjas e maças. Um dos meninos, o menorzinho, mexeu com ele.
Queria briga. Ele não queria.
Baianinho aproximara, depois vieram os
outros, sentaram no meio-fio. Cada menino que chegava dizia o nome. Ele
distribuiu todo o seu cigarro. De repente todos os meninos sumiram. Ele estava
sozinho diante de uma policial.
-
O
que você está fazendo aqui moleque?
-
Minha
mãe mandou que eu esperasse, estou vigiando o carrinho.
O
polícia foi embora e os meninos voltaram.
O
que houve? Como foi?
Ele
era batuta, inteligente e calmo. Bom para ser um deles.
Passaram
a tarde contando histórias das perseguições policiais, mas quais os meninos
tinham mais experiência.
Histórias
de brutalidade e de cadeias de menores. Baianinho não o aceitou com facilidade.
Logo tiveram uma desavença e o Baianinho lhe deu uma surra de tapas. Chegou ao
ponto de necessitar da interferência do Grande.
-
Chega!
Você já bateu muito. E você já apanhou bastante.
O Grande perguntou se eu pensava em
vingar.
-
Esqueça
esta mania de vingança. Isto não dá certo. Procure equilibrar entre bater muito
e apanhar o bastante.
Discutiram um tanto para acabarem
apertando a mão com muita escama.
O menino jamais esqueceria aquela
surra.
“Quem bate esquece, quem apanha nunca
esquece”. Ouviu e repetia sempre.
O primeiro assalto, com a participação
de todos do grupo, ocorreu em um dia cheio de sol, logo depois que a loja de
armas abriu sua porta.
Pusera pela primeira vez uma arma na
mão. Um vinte e dois. Olha para a arma e suas pernas tremiam. Agora era um
bandido e sabia que tudo aquilo era
perigoso. Muito perigoso.
Devia fugir e fugiu.
Eles que continuassem o assalto.
Desapareceu feito um doido. Teve vergonha da fuga, do seu medo. Procurou ir
para bem longe no outro estremo da cidade.
Resolveu voltar, a curiosidade era demais.
Saber o que aconteceu com o resto do pessoal. No fim, ele seria era bandido
mesmo.
Então, o melhor era começar duma vez.
Para a turma dissera que perdera o revólver, que fora preso, que passara um mal
bocado e que conseguiu fugir.
Baianinho escutou e conclui com
provocações
- Você é bobo de
deixarem te pegar na manha.
E
conclusivo:
- Um
bocó.
Não
reagiu. Nãoreagiria. Outra briga e ele apanharia mais do que o suficiente. Não
quis esta briga, porque desta vez ele não pensou em disputar aos socos, mas em
dar um tiro no meio da testa de Baianinho. O revólver bem guardado e camuflado
em seu corpo. Qualquer coisa, não vacilaria.
Franzino, ágil e esperto entrava nas
casas pelos vidros.
Sobrevivia. Mestres eram os
receptadores. Muitas vezes, entrou em casas onde apenas dormiu.
Certa vez arrastara os tapetes de uma
casa, arrumara um sobre o outro, fez a cama perto da porta dos fundos. Qualquer
barulho acordaria. A cortina virou coberta e deitou. Apagou. Acordou com o
barulho do leiteiro. Apanhou um litro de leite e um pão, comeu e bebeu tendo
vagos sonhos de fartura. O pão que sobrara meteu debaixo da cortina. O sono era
muito. Voltou a dormi e acordou com vozes ao redor.
-
Coitadinho.
-
Ele
é muito novo.
-
Teria
dez anos!
-
Coitado!
Não tem é lugar onde dormir.
Não podia nunca assustar. Na mesma
posição fingindo que dormia. Eram varias mulheres e dois homens.
Aliviou-se quando eles resolveram
deixá-lo dormir.
-
Dona
Ernestina fique aí com ele, quando acordar manda nos chamar.
-
Coitado!
Os outros
saíram. O menino começou a ter raiva da mulher. Coitado! Ele não era aleijado!
- Coitado!
Esperou ainda
uns minutos, quando cobriu Dona Ernestina com a cortina e fugiu.
Surpreendido
na casa de um japonês, tentou fugir, pulando um pequeno muro.
O japonês,
muito forte, o buscara pelo pescoço como se apanha um iô-iô.
Além de forte,
o japonês era um homem bom. A mulher fez a mesa.
- Você só irá
embora depois de tomar uma refeição conosco e de nos contar suas histórias. O
menino inventou histórias fabulosas para o japonês.
-
Você
tem pai? – perguntou o japonês.
-
Não.
-
Mãe?
-
Não.
O japonês, sua
mulher os três filhos ficaram calados olhando o menino. Continuaram comendo em
silêncio.
- Eu tenho só
o mundo para mim.
Da casa do
japonês não precisaria fugir. O japonês ofereceu sua casa para ele ficar. Não
aceitou e explicou por que:
“Não teria em
lugar nenhum o tratamento que queria. Ali acabaria por ser inferior,
tornar-se-ia um empregado dele e dos filhos dele.”
Disse tudo isto sem muitas palavras, não com
estas palavras, disse mais com silêncios, mais com gestos que todos entenderam.
Dois meses
depois foi preso de verdade. Caiu no Juizado de Menores. Uma família em busca
de uma criança para criar o aceitou.
Numa casa
enorme de GRANDES JARDINS era o casal, a empregada e ele.
Passou muito tempo
na casa de Grandes Jardins. Ficava maravilhado com os jardins. Aguentou
enquanto aqueles grandes jardins estiveram floridos. Colocou na mala várias joias
e despediu das roseiras.
Um colar
vendeu por quinhentos cruzeiros. O intrujão, receptador, que apareceu na praça
no dia, se embasbacara ao ver a peça. Até por cinqüenta ele passava a pedra e o
colar, mas só no colar o intrujão deu quinhentos. Foi na hora. Negócio que é
negócio não volta atrás. Recebeu o dinheiro e nunca mais viu aquela cara
espantada na praça.
Passou uns dias
na casa da avó, as pessoas chegavam e saiam, era do trabalho para a televisão e
da televisão para o trabalho. A casa da avó não mais o atraia. Ela já não era
mais a sua mãe.
Era apenas uma
velha, uma velha calada, silenciosa.
Agora, seu
negócio era viajar nas cidades fronteiras de São Paulo, Paraná e Paraguai. Vez
ou outra aparecia, por acidente e de passagem, na casa da avó. Um pouco de saudade. Já era um homem.
Tinha 14 anos.