quinta-feira, 9 de agosto de 2018

BIEL (VODKA) DOS 12 AOS 14 ANOS






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Um dos pequenos meninos 

do meio do mundo


Martin Esquacre 

(Para Elson Martins)







Aos nove anos, roubou um pacote em uma agência bancária. Aquele menino pequeno escapuliu sem que fosse percebida sequer a sua presença no Banco.

Desfez o pacote e abriu a surpresa: nunca colocara entre os seus dedos tamanha quantidade de dinheiro.

Teve medo, mas esta bobagem passou logo.

Deixou o dinheiro em um canto seguro.

Durante muitos dias hesitou entre vários locais.

Escondeu, finalmente, atrás do altar da velha igreja centenária, um prédio em ruínas.

Comprou uma calça comprida, a sua primeira calça comprida, comprou sapatos, uma camisa amarela, um chapéu com peninha.

Nos armazéns, comprava comidas antes apenas imaginadas.

Quis comprar roupas no estilo das roupas justas e bonitas dos heróis das revistinhas. Não encontrou. A sorte estava do seu lado. Já despertava suspeitas

Um dia já adulto conseguiu satisfazer seus sonhos de poder colocar um capacete no estilo dos seus fabulosos heróis do espaço.

Esta foi a sua primeira grande aventura, seu primeiro grande êxito.

Cidade pequena, seus gastos foram notado.

Com um pouco de paciência e utilizando de uma bem organizada campana, a polícia encontrou o dinheiro.

Os policiais nada mais lhe disseram senão que iriam arrancar-lhe o saco fora se ele repetisse o que fizera.

O dono do pacote, encontrado no banco, era um senhor gordo, grande, de pouca conversa. Acompanhou o interrogatório do menino. Ao sair, tirou vinte cruzeiros do bolso e deu ao menino.

A partir desta primeira investida, a avó e as tias concluíram que ele dava muito trabalho.

A tia de São Paulo opinou que deveriam levá-lo para lá, teria escola, uma vida melhor.

“O ambiente seria outro, quaisquer deslize ele seria levado a um reformatório”.

Esta tia não prestava, não valia nada. O que ela queria com ele em São Paulo?

Sensibilidade aguçada, na sobrevivência, pressentia que alguma maldade tramavam. Ele não podia era acreditar que a vó se deixasse envolver naqueles planos.

Ela era, de fato, a sua mãe. Não podia perder tudo o que ele tinha e tudo que ele tinha era a avó.

Se elas tramavam, o que ele devia fazer? Parava de brincar, mas não conseguia imaginar que tipo de maldade elas seriam capazes de cometer e assim se viu impedido de pensar mais alguma coisa.

Uma coisa ele não queria, era ser surpreendido.

A surpresa veio, a avó deu a sentença, ele iria para São Paulo porque era para melhor para ele.

No ônibus, a tia de São Paulo avisou que ele ficaria na casa de Dora, uma outra tia. Desta tia ele não gostava mesmo. As cidades passavam pelo ônibus, em cada parada o menino criava projetos de fuga, sempre transferidos para parada seguinte.

Assim, chegaram na grande cidade cinza.

A tia veio com uma conversa que ele logo entendeu. A maldade era esta: ele seria abandonado na rodoviária sob a alegação de que a tia buscaria a tia Dora para “buscá-lo”.

Não imaginara o quanto de covardia aquela mulher pintada, cara lambuzada de cores vivas, abrigava.

Aceitou a proposta mesmo não formulada. Entendia elas e ele não tinha medo. O desejo da tia de abandoná-lo e o seu desejo de fugir chegaram a um acordo.

Doze anos e a liberdade conquistada pelo abandono.

A tia falou, falou, falou muito. Não escutava nada, queria que ela desaparecesse. Por fim, a tia abriu a bolsa e tirou uma nota de cinquenta cruzeiros.

Aquela mulher feia, de cara suja, aquela mulher má, desapareceu no meio do povo.

Na padaria, gastou boa parte do dinheiro com doces e, depois, com passeios de ônibus.

Zerado, sem um tostão, aproveitou a distração do cobrador do ônibus, pegou o que conseguiu e correu.

Conseguira sessenta cruzeiros. Gastou do mesmo jeito.

Dormia dentro dos carros, entrando pelas janelas forçando os vidros.

Num dia de muito frio, acordou com a Kombi em movimento. No volante, careca discutia com a mulher ao lado. Ela quase o flagrara. Em um sinal, abriu a porta da Kombi e deixou o casal paralisado no susto.

Andando onde havia movimento, pois não gostava de ruas paradas, chegou a um mercado. Observou alguns meninos roubando frutas, bananas, laranjas e maças. Um dos meninos, o menorzinho, mexeu com ele. Queria briga. Ele não queria.

Baianinho aproximara, depois vieram os outros, sentaram no meio-fio. Cada menino que chegava dizia o nome. Ele distribuiu todo o seu cigarro. De repente todos os meninos sumiram. Ele estava sozinho diante de uma policial.

-      O que você está fazendo aqui moleque?

-      Minha mãe mandou que eu esperasse, estou vigiando o carrinho.

O polícia foi embora e os meninos voltaram.

O que houve? Como foi?

Ele era batuta, inteligente e calmo. Bom para ser um deles.

Passaram a tarde contando histórias das perseguições policiais, mas quais os meninos tinham mais experiência.

Histórias de brutalidade e de cadeias de menores. Baianinho não o aceitou com facilidade. Logo tiveram uma desavença e o Baianinho lhe deu uma surra de tapas. Chegou ao ponto de necessitar da interferência do Grande.

-      Chega! Você já bateu muito. E você já apanhou bastante.

O Grande perguntou se eu pensava em vingar.

-      Esqueça esta mania de vingança. Isto não dá certo. Procure equilibrar entre bater muito e apanhar o bastante.

Discutiram um tanto para acabarem apertando a mão com muita escama.

O menino jamais esqueceria aquela surra.

“Quem bate esquece, quem apanha nunca esquece”. Ouviu e repetia sempre.

O primeiro assalto, com a participação de todos do grupo, ocorreu em um dia cheio de sol, logo depois que a loja de armas abriu sua porta.

Pusera pela primeira vez uma arma na mão. Um vinte e dois. Olha para a arma e suas pernas tremiam. Agora era um bandido e  sabia que tudo aquilo era perigoso. Muito perigoso.  

Devia fugir e fugiu.

Eles que continuassem o assalto. Desapareceu feito um doido. Teve vergonha da fuga, do seu medo. Procurou ir para bem longe no outro estremo da cidade.

Resolveu voltar, a curiosidade era demais. Saber o que aconteceu com o resto do pessoal. No fim, ele seria era bandido mesmo.

Então, o melhor era começar duma vez. Para a turma dissera que perdera o revólver, que fora preso, que passara um mal bocado e que conseguiu fugir.

Baianinho escutou e conclui com provocações

-      Você é bobo de deixarem te pegar na manha.

E conclusivo:

      -    Um bocó.

Não reagiu. Nãoreagiria. Outra briga e ele apanharia mais do que o suficiente. Não quis esta briga, porque desta vez ele não pensou em disputar aos socos, mas em dar um tiro no meio da testa de Baianinho. O revólver bem guardado e camuflado em seu corpo. Qualquer coisa, não vacilaria.

Franzino, ágil e esperto entrava nas casas pelos vidros.

Sobrevivia. Mestres eram os receptadores. Muitas vezes, entrou em casas onde apenas dormiu.

Certa vez arrastara os tapetes de uma casa, arrumara um sobre o outro, fez a cama perto da porta dos fundos. Qualquer barulho acordaria. A cortina virou coberta e deitou. Apagou. Acordou com o barulho do leiteiro. Apanhou um litro de leite e um pão, comeu e bebeu tendo vagos sonhos de fartura. O pão que sobrara meteu debaixo da cortina. O sono era muito. Voltou a dormi e acordou com vozes ao redor.


-      Coitadinho.

-      Ele é muito novo.

-      Teria dez anos!

-      Coitado! Não tem é lugar onde dormir.

Não podia nunca assustar. Na mesma posição fingindo que dormia. Eram varias mulheres e dois homens.

Aliviou-se quando eles resolveram deixá-lo dormir.

-      Dona Ernestina fique aí com ele, quando acordar manda nos chamar.

-      Coitado!

Os outros saíram. O menino começou a ter raiva da mulher. Coitado! Ele não era aleijado!

- Coitado!

Esperou ainda uns minutos, quando cobriu Dona Ernestina com a cortina e fugiu.

Surpreendido na casa de um japonês, tentou fugir, pulando um pequeno muro.

O japonês, muito forte, o buscara pelo pescoço como se apanha um iô-iô.

Além de forte, o japonês era um homem bom. A mulher fez a mesa.

- Você só irá embora depois de tomar uma refeição conosco e de nos contar suas histórias. O menino inventou histórias fabulosas para o japonês.

-      Você tem pai? – perguntou o japonês.

-      Não.

-      Mãe?

-      Não.

O japonês, sua mulher os três filhos ficaram calados olhando o menino. Continuaram comendo em silêncio.

- Eu tenho só o mundo para mim.

Da casa do japonês não precisaria fugir. O japonês ofereceu sua casa para ele ficar. Não aceitou e explicou por que:

“Não teria em lugar nenhum o tratamento que queria. Ali acabaria por ser inferior, tornar-se-ia um empregado dele e dos filhos dele.”

 Disse tudo isto sem muitas palavras, não com estas palavras, disse mais com silêncios, mais com gestos que todos entenderam.

Dois meses depois foi preso de verdade. Caiu no Juizado de Menores. Uma família em busca de uma criança para criar o aceitou.

Numa casa enorme de GRANDES JARDINS era o casal, a empregada e ele.

Passou muito tempo na casa de Grandes Jardins. Ficava maravilhado com os jardins. Aguentou enquanto aqueles grandes jardins estiveram floridos. Colocou na mala várias joias e despediu das roseiras.

Um colar vendeu por quinhentos cruzeiros. O intrujão, receptador, que apareceu na praça no dia, se embasbacara ao ver a peça. Até por cinqüenta ele passava a pedra e o colar, mas só no colar o intrujão deu quinhentos. Foi na hora. Negócio que é negócio não volta atrás. Recebeu o dinheiro e nunca mais viu aquela cara espantada na praça.

Passou uns dias na casa da avó, as pessoas chegavam e saiam, era do trabalho para a televisão e da televisão para o trabalho. A casa da avó não mais o atraia. Ela já não era mais a sua mãe.

Era apenas uma velha, uma velha calada, silenciosa.

Agora, seu negócio era viajar nas cidades fronteiras de São Paulo, Paraná e Paraguai. Vez ou outra aparecia, por acidente e de passagem, na casa da avó.  Um pouco de saudade. Já era um homem.

Tinha 14 anos.