segunda-feira, 8 de julho de 2019

A CERIMÔNIA SOLITÁRIA





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QUANDO A REDE QUEBRA


Leandro Tocantins 

copy de Roberto Melo Maia








Nas montanhas bolivianas, as estradas são marcadas pelo conjunto de uma paisagem aparentemente hostil. Curvas, caminhos irregulares, vales secos, terra amarela e vazios  que se sucedem a vazios. Em grupos barulhentos e, muitas vezes, silenciosos, famílias de índios cortam seu caminho árido. As poucas árvores não eliminam a sensação de vazio,  de deserto.

Afastávamos de Santa Cruz de La Sierra, em direção a Caatuxi, nas terras dos Turonos, uma velha tribo, que sobrevivera à destruição de uma missão jesuíta, no século XVII.

Local deixado por Roger Gonçalves, que saiu de lá para estudar.

Hoje, o engenheiro Roger voltava para uma rápida visita aos seus pais, tios e irmãos.

Maior e mais forte do que os de sua geração, Roger já não era, fisicamente, nem culturalmente, um turono.

"Estou me afastando, perdido em um espaço ocidental e já vejo a terra, lá embaixo, muito  distante. Eu não tenho o direito a estas voltas".

Roger ri. Com seu violão, nos surpreendia, com uma música suave. Outras vezes, dedilhava as cordas como se sugerisse uma dança interminável. As canções alastravam alegrias. Sempre. Isto com o violão do Régis. Era alegria ou zombaria, deboche ou a exposição crua dos nossos ridículos  comportamentos. Já as músicas da tribo eram palavras cantadas, soltas. Eu gritava.

Roger me apresentou sua irmã mais jovem. Era pequena, muito pequena. Sua pele tinha um cheiro de flores de manacá. Uma semana e eu estava, diante de uma cerimônia turona, casando com a irmã de Régis. Era uma estupidez. Todos concordávamos. Não havia saída. Todos também concordavam que aquela cerimônia era uma loucura, uma estupidez.

Nenhum de nós ficaria naquelas terras, muito menos na Bolívia.

Casados, passávamos horas inteiras enrolados na rede. Quando a rede quebrava eram dois dias de festa e brincadeiras.

- O Quebra-rede.

- A Quebra-rede.

Eram os gritos da brincadeira e da alegria.

Não imaginava que aquela paixão me marcaria, com muita dor, pelo resto da minha vida.

Ela estava condenada a ser mulher de um marido distante. Viúva de um sonho, de um homem vivo, que estaria em outras terras, vivendo um outro amor, como O Vermelho das Histórias dos Mares do Sul de Somerset Maugham.

Gordo, velho, careca e imundo, eu jamais voltaria àquelas montanhas que, com carinho, pinçavam uma lua cheia do meio da neve e do ar seco. Nem mesmo a nossa sobrevivência se garantia ao transpormos o outro lado da serra de neves eternas.

Leg e Ferrugem não concordavam com "aquele meu gesto".

Casar? Teria abusado do amor  e da confiança de todos. Se fôssemos mais sérios, eu deveria estar sendo julgado por um tribunal revolucionário.

Roger ouvia a discussão. Voltou-se para nós e citou Vinicius. Os turonos acreditam nos poetas. "O amor é isto mesmo, é eterno enquanto dura. Minha irmã está feliz, todos nós estamos felizes. A vida reclama vida, mais nada. Já que o Leg insiste tanto em seu julgamento, vamos implantar, com os nossos pais e amigos mais velhos, um tribunal da razão indígena e vamos dar um sentido e um destino a esta história de amor. E taxativo:  não vamos cultuar a tragédia”.

As objeções dos dois companheiros (Leg do Paraná e Ferrugem Carioca) perseguiram-me nas terras bolivianas. Dias antes de voltarmos à estrada, surgiu no corpo daquela moça cheiros maravilhosos e um prazer sempre crescente e sempre surpreendente em meio a uma grande dor.

"Eu vou te perder, definitivamente".

 Era dor muito grande para ela. Era dor muito grande para mim.

A mais estranha cerimônia estava no olhar, no ritual dos gestos de sua mão macia, leve, pequenininha, descansando os meus músculos, depois de uma caçada, de uma pescaria,  de uma dança. Depois de uma grande reunião de histórias de homens valentes que sempre existirão, homens cuja valentia resultava sempre em belas obras ou no nascimento de uma árvore frutífera. Plantamos um pé de manga e uma roça de mandioca. Ela não deixava meus olhos fecharem ou abrirem sem que eu encontrasse o seu sorriso. Naquele deserto e oasis, nem a lua, arrancada das montanhas de gelo, era mais bela. Nós não nos despedíamos. Ali, todos nós vivemos uma grande cumplicidade com o destino. Nós dois, principalmente.

Foram exatos 45 dias de felicidade.

- E a dor?

- A dor, cara, estava no inesperado, quando, cinco anos depois, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, caminhava para um encontro marcado, na clandestinidade com Régis.
Com seu terno preto, camisa branca e pernas tortas, ele caminhava na minha direção. Sempre continha o impulso de abraçá-lo, calado, segurá-lo com força, como se fosse possível fundir amigos. 

Ele parou.

Não nos abraçamos. Ele não falava nada. Nem o código. As medidas de segurança foram para o espaço.

Não falamos uma palavra. Ele colocou em meus ombros suas mãos, trêmulas, frias e suadas. Nesse instante,  tomou a iniciativa e me abraçou.

Quando suas lágrimas caíram nas minhas costas, as minhas chegaram juntas. Caminhamos pelo parque. Chorávamos.

Eu conhecia a força daquela cerimônia turona. Não podíamos falar uma só palavra.

Nossos olhos deviam dizer da nossa dor. Dali só as lágrimas podiam sair.

Nada mais. Nada. Nenhum ruído. Só a dor imensa de perder o maior amor vivido da nossa vida.
No céu, em São Paulo, a noite chegou. Em um céu muito limpo, claro, brilhava uma lua cheia, explodindo sobre os prédios.

Agora, a minha cerimônia era uma cerimônia solitária. O ritual era o ritual da solidão.  Eu me sentia terrivelmente só no mundo.