QUANDO A REDE QUEBRA
Leandro Tocantins
copy de Roberto Melo Maia
copy de Roberto Melo Maia
Nas montanhas bolivianas, as estradas são marcadas pelo conjunto de uma
paisagem aparentemente hostil. Curvas, caminhos irregulares, vales secos, terra
amarela e vazios que se sucedem a
vazios. Em grupos barulhentos e, muitas vezes, silenciosos, famílias de índios
cortam seu caminho árido. As poucas árvores não eliminam a sensação de
vazio, de deserto.
Afastávamos de Santa Cruz de La Sierra, em direção a Caatuxi, nas terras
dos Turonos, uma velha tribo, que sobrevivera à destruição de uma missão
jesuíta, no século XVII.
Local deixado por Roger Gonçalves, que saiu de lá para estudar.
Hoje, o engenheiro Roger voltava para uma rápida visita aos seus pais,
tios e irmãos.
Maior e mais forte do que os de sua geração, Roger já não era,
fisicamente, nem culturalmente, um turono.
"Estou me afastando, perdido em um espaço ocidental e já vejo a
terra, lá embaixo, muito distante. Eu
não tenho o direito a estas voltas".
Roger ri. Com seu violão, nos surpreendia, com uma música suave. Outras
vezes, dedilhava as cordas como se sugerisse uma dança interminável. As canções
alastravam alegrias. Sempre. Isto com o violão do Régis. Era alegria ou
zombaria, deboche ou a exposição crua dos nossos ridículos comportamentos. Já as músicas da tribo eram
palavras cantadas, soltas. Eu gritava.
Roger me apresentou sua irmã mais jovem. Era pequena, muito pequena. Sua
pele tinha um cheiro de flores de manacá. Uma semana e eu estava, diante de uma
cerimônia turona, casando com a irmã de Régis. Era uma estupidez. Todos
concordávamos. Não havia saída. Todos também concordavam que aquela cerimônia
era uma loucura, uma estupidez.
Nenhum de nós ficaria naquelas terras, muito menos na Bolívia.
Casados, passávamos horas inteiras enrolados na rede. Quando a rede
quebrava eram dois dias de festa e brincadeiras.
- O Quebra-rede.
- A Quebra-rede.
Eram os gritos da brincadeira e da alegria.
Não imaginava que aquela paixão me marcaria, com muita dor, pelo resto
da minha vida.
Ela estava condenada a ser mulher de um marido distante. Viúva de um
sonho, de um homem vivo, que estaria em outras terras, vivendo um outro amor,
como O Vermelho das Histórias dos Mares do Sul de Somerset Maugham.
Gordo, velho, careca e imundo, eu jamais voltaria àquelas montanhas que,
com carinho, pinçavam uma lua cheia do meio da neve e do ar seco. Nem mesmo a
nossa sobrevivência se garantia ao transpormos o outro lado da serra de neves
eternas.
Leg e Ferrugem não concordavam com "aquele meu gesto".
Casar? Teria abusado do amor e da
confiança de todos. Se fôssemos mais sérios, eu deveria estar sendo julgado por
um tribunal revolucionário.
Roger ouvia a discussão. Voltou-se para nós e citou Vinicius. Os turonos
acreditam nos poetas. "O amor é isto mesmo, é eterno enquanto dura. Minha
irmã está feliz, todos nós estamos felizes. A vida reclama vida, mais nada. Já
que o Leg insiste tanto em seu julgamento, vamos implantar, com os nossos pais
e amigos mais velhos, um tribunal da razão indígena e vamos dar um sentido e um
destino a esta história de amor. E taxativo:
não vamos cultuar a tragédia”.
As objeções dos dois companheiros (Leg do Paraná e Ferrugem Carioca)
perseguiram-me nas terras bolivianas. Dias antes de voltarmos à estrada, surgiu
no corpo daquela moça cheiros maravilhosos e um prazer sempre crescente e
sempre surpreendente em meio a uma grande dor.
"Eu vou te perder, definitivamente".
Era dor muito grande para ela.
Era dor muito grande para mim.
A mais estranha cerimônia estava no olhar, no ritual dos gestos de sua
mão macia, leve, pequenininha, descansando os meus músculos, depois de uma
caçada, de uma pescaria, de uma dança.
Depois de uma grande reunião de histórias de homens valentes que sempre
existirão, homens cuja valentia resultava sempre em belas obras ou no
nascimento de uma árvore frutífera. Plantamos um pé de manga e uma roça de
mandioca. Ela não deixava meus olhos fecharem ou abrirem sem que eu encontrasse
o seu sorriso. Naquele deserto e oasis, nem a lua, arrancada das montanhas de
gelo, era mais bela. Nós não nos despedíamos. Ali, todos nós vivemos uma grande
cumplicidade com o destino. Nós dois, principalmente.
Foram exatos 45 dias de felicidade.
- E a dor?
- A dor, cara, estava no inesperado, quando, cinco anos depois, no
Parque do Ibirapuera, em São Paulo, caminhava para um encontro marcado, na
clandestinidade com Régis.
Com seu terno preto, camisa branca e pernas tortas, ele caminhava na
minha direção. Sempre continha o impulso de abraçá-lo, calado, segurá-lo com
força, como se fosse possível fundir amigos.
Ele parou.
Não nos abraçamos. Ele não falava nada. Nem o código. As medidas de
segurança foram para o espaço.
Não falamos uma palavra. Ele colocou em meus ombros suas mãos, trêmulas,
frias e suadas. Nesse instante, tomou a
iniciativa e me abraçou.
Quando suas lágrimas caíram nas minhas costas, as minhas chegaram
juntas. Caminhamos pelo parque. Chorávamos.
Eu conhecia a força daquela cerimônia turona. Não podíamos falar uma só
palavra.
Nossos olhos deviam dizer da nossa dor. Dali só as lágrimas podiam sair.
Nada mais. Nada. Nenhum ruído. Só a dor imensa de perder o maior amor
vivido da nossa vida.
No céu, em São Paulo, a noite chegou. Em um céu muito limpo, claro,
brilhava uma lua cheia, explodindo sobre os prédios.
Agora, a minha cerimônia era uma cerimônia solitária. O ritual era o
ritual da solidão. Eu me sentia
terrivelmente só no mundo.