terça-feira, 27 de agosto de 2019

AS PISTAS DEIXADAS NA ESTRADA






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Todos os caminhos 

que nos levam 

ao coração selvagem








Não sou nada

Nunca serei nada

Não posso querer ser nada

À parte isso, tenho em mim 

todos os sonhos do mundo...
Fernando Pessoa



Quem sou eu?

Sou mais do que um homem? Sou mais do que um coração dentro de um único peito? Sou mais do que as minhas mãos alcançam? Sou eu o outro também? O outro que conheço? O outro que admiro? O outro que odeio sem querer odiar?

Serei eu aquele menino que fui em uma cidade quente e ensolarada do Vale do Mucuri?

Descendente de misturas de índios, negros e europeus? E este meu nariz? Árabe ou judeu? Este meu nariz? Grego?

Serei aquele menino diante do sexo e do amor? Serei aquele homem diante dos caminhos desenhados para o céu e o inferno, querendo saber de outros caminhos e de outros continentes?

Com medo das figuras tornadas feias e ditas demoníacas? Quem sou eu a procura de espaços no céu, sempre no céu em todas as horas? Aqueles olhos armados a procura de estrelas e de nuvens, de caminhos além dos céus?

Serei aquele perguntador, insatisfeito com a admiração, insatisfeito com a resposta?

Serei sempre uma pergunta. Uma dúvida?


Nome

Um dia me deram um nome. Eu o esqueci em meio a todos os outros nomes que tive e de todos os nomes que adquiri.

Um dia chamaram-me de Tito e era fácil entender. Era o nome do meu pai e o nome do meu pai fora tirado de uma folhinha católica no dia em que ele nascera.

Depois fui Juca, fui Tadeu armado até os dentes e pronto para libertar uma nação e um povo enxovalhado. Fui derrotado e preso.

Fui Carlos na guerra sem fim e que até hoje me persegue e que nunca acaba.

Fui Guima para aquela mulher que sabe amar.

Fui “Bem” e não fui apenas amado, não soube amar.

Com o nome dito com todas as letras, Tito Guimarães Filho, aquela mulher queria mais e tudo de mim.

“Eu te amo rapaz” ela dizia e também cantava como Rita Lee.

Ela me chamou de “meu amor” e quase me arrebentou todo. Arregaçou minha vida. Bêbada e louca, ela me amou como uma louca e eu soube acompanhá-la quando ela me chamava de “Meu Amor”.


Data em que costumo apagar velas

Apago as velas todos os dias. Nasci em todos os signos. Nascer e renascer tornou-se para mim uma obsessão.

Faço questão de todos os dias nascer de novo e de recriar-me, refazer-me, multiplicar-me, esqueço muitas vezes de quem fui e até da data do aniversário daquele menino que amou Maria.

Nasci antes de todos os tempos e, em muitos séculos, sequer cheguei a existir. Era só olho, era só olhar e extasiado não acreditava no que via, nem na beleza e nem nas tragédias.

Via tudo, apenas via, apenas tinha olhos e meus olhos iam registrar até mesmo sonhos, até mesmo pesadelos. Das coisas vivas registrava gestos e obras.

Houve dias de nascer especiais e que não se repetiram.

Um destes dias, eu nasci quando já estava com 58 anos, foi no dia 05 de novembro, quando na BR 040, perto de Barbacena, final da tarde, ainda dia claro,depois de fortes chuvas, fui colhido por um raio, que transformou o carro em uma bola de fogo.

Bola de fogo descrita pelo motorista e pela mulher que vinham no carro logo atrás.

Perplexos, abobalhados, olhavam-me assustados quando paramos na lanchonete Rose Lanche.

- Tome meu cartão. Quando contar que um raio te atingiu e a pessoa não acreditar, dê o meu telefone.

Nasci das torturas, em chãos de cimento, em terrenos baldios e leitos de hospitais militares.

Olhava sempre para as nuvens e para as estrelas. Elas foram sempre, nestes momentos de muita solidão, minhas verdadeiras armas de resistência.

Nem sei, cara, se existe “muita” solidão.

Sei que era uma solidão tão grande que chegava do distante ponto do universo que percebia de dia e de noite.


Nasci

Em mãos e em peitos amorosos, em colos e em cantos quentes e doces. Escutei palavras, sons e alegrias, feliz de ter ao meu lado homens e mulheres que via sempre com um gostoso sorriso em seus rostos.

Nasci numa cidade quente, onde descalço e menino corria de sombra em sombra.

Nasci numa fazenda de frente para uma serra, onde em um boqueirão escondiam-se minhas fantasias e meus sonhos de menino e aventureiro.

Nasci em um colégio, onde as crianças usavam roupas limpas, que eles chamavam de “uniformes”. Era uma escola para nos disciplinar, nos colocar dentro de uniformes. Dentro das salas de aulas, em carteiras iguais e em ordem, aprendíamos a ler uniformizados.

Nasci nas prisões, ao lado de muitos homens torturados, assassinos e ladrões. Ao lado de homens que vigiavam outros homens para impedi-los de fugir.

Nasci ao lado de homens condenados, todos cumprindo penas a que foram condenados pelos seus crimes ou pelas suas inconsequências e inocências.

Nasci também nos olhos de uma menina que descobriu-me prisioneiros de suas mãos e de seus lábios.


Onde moro

Em um planeta meio tonto, meio bobo, muito solitário e incapaz de ser apenas um meu lugar, misturando todos nós, girando sem parar, sempre fazendo, todos os anos, o mesmo caminho, bobo, incapaz de transgredir, incapaz de desviar-se de sua rota, um mundo de mares e de terras, de florestas e de alegrias.

Moro aqui e moro ali. Como não dizer que moro em Niterói, em Tribobó, e que como jambo na árvore maior do sítio do Coronel Nicoll.

Moro em Montevidéu, percorrendo da praia de Ramirez à praia de Pocitos, andando pelo Parque Rodó.

Moro nos igarapés da Amazônia, em Marzagão.

Colho frutas em Castanhal, moro na gráfica da igreja em São José de Macapá, atrás das ondas da rádio São José de Macapá, onde mora meu filho, Tito Neto, que vi apenas menino, dependurado na grade do parlatório da Penitenciária de Linhares, em Juiz de Fora, e que nunca mais vi a não ser em fotos.

Ele, a mulher e os filhos, meus netos, crianças que nunca tive em meus braços e que nunca falaram comigo e com quem eu nunca falei, de quem ignoro tudo. Isto é dor.

Isto é sonho e pensar. Eu penso neles quando estou só e eu gosto de estar só para pensar nestas crianças e na criança que ficou lá atrás, dependurada na grade do parlatório, distante de mim e eu com medo de que ele se soltasse e caísse no chão.

Ele não caiu. Ele não se soltou.