Todos os caminhos
que nos levam
ao coração selvagem
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Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada
À parte isso, tenho em mim
todos os sonhos do mundo...
Fernando Pessoa
Quem sou eu?
Sou mais do que um homem? Sou
mais do que um coração dentro de um único peito? Sou mais do que as minhas mãos
alcançam? Sou eu o outro também? O outro que conheço? O outro que admiro? O
outro que odeio sem querer odiar?
Serei eu aquele menino que fui
em uma cidade quente e ensolarada do Vale do Mucuri?
Descendente de misturas de
índios, negros e europeus? E este meu nariz? Árabe ou judeu? Este meu nariz?
Grego?
Serei aquele menino diante do
sexo e do amor? Serei aquele homem diante dos caminhos desenhados para o céu e
o inferno, querendo saber de outros caminhos e de outros continentes?
Com medo das figuras tornadas
feias e ditas demoníacas? Quem sou eu a procura de espaços no céu, sempre no
céu em todas as horas? Aqueles olhos armados a procura de estrelas e de nuvens,
de caminhos além dos céus?
Serei aquele perguntador,
insatisfeito com a admiração, insatisfeito com a resposta?
Serei sempre uma pergunta. Uma
dúvida?
Nome
Um dia me deram um nome. Eu o
esqueci em meio a todos os outros nomes que tive e de todos os nomes que
adquiri.
Um dia chamaram-me de Tito e
era fácil entender. Era o nome do meu pai e o nome do meu pai fora tirado de uma
folhinha católica no dia em que ele nascera.
Depois fui Juca, fui Tadeu
armado até os dentes e pronto para libertar uma nação e um povo enxovalhado. Fui
derrotado e preso.
Fui Carlos na guerra sem fim e
que até hoje me persegue e que nunca acaba.
Fui Guima para aquela mulher que
sabe amar.
Fui “Bem” e não fui apenas
amado, não soube amar.
Com o nome dito com todas as
letras, Tito Guimarães Filho, aquela mulher queria mais e tudo de mim.
“Eu te amo rapaz” ela dizia e também
cantava como Rita Lee.
Ela me chamou de “meu amor” e
quase me arrebentou todo. Arregaçou minha vida. Bêbada e louca, ela me amou
como uma louca e eu soube acompanhá-la quando ela me chamava de “Meu Amor”.
Data em que costumo apagar velas
Apago as velas todos os dias.
Nasci em todos os signos. Nascer e renascer tornou-se para mim uma obsessão.
Faço questão de todos os dias
nascer de novo e de recriar-me, refazer-me, multiplicar-me, esqueço muitas
vezes de quem fui e até da data do aniversário daquele menino que amou Maria.
Nasci antes de todos os tempos
e, em muitos séculos, sequer cheguei a existir. Era só olho, era só olhar e
extasiado não acreditava no que via, nem na beleza e nem nas tragédias.
Via tudo, apenas via, apenas
tinha olhos e meus olhos iam registrar até mesmo sonhos, até mesmo pesadelos. Das
coisas vivas registrava gestos e obras.
Houve dias de nascer especiais
e que não se repetiram.
Um destes dias, eu nasci quando
já estava com 58 anos, foi no dia 05 de novembro, quando na BR 040, perto de
Barbacena, final da tarde, ainda dia claro,depois de fortes chuvas, fui colhido
por um raio, que transformou o carro em uma bola de fogo.
Bola de fogo descrita pelo
motorista e pela mulher que vinham no carro logo atrás.
Perplexos, abobalhados,
olhavam-me assustados quando paramos na lanchonete Rose Lanche.
- Tome meu cartão. Quando
contar que um raio te atingiu e a pessoa não acreditar, dê o meu telefone.
Nasci das torturas, em chãos de
cimento, em terrenos baldios e leitos de hospitais militares.
Olhava sempre para as nuvens e
para as estrelas. Elas foram sempre, nestes momentos de muita solidão, minhas
verdadeiras armas de resistência.
Nem sei, cara, se existe
“muita” solidão.
Sei que era uma solidão tão
grande que chegava do distante ponto do universo que percebia de dia e de
noite.
Nasci
Em mãos e em peitos amorosos,
em colos e em cantos quentes e doces. Escutei palavras, sons e alegrias, feliz
de ter ao meu lado homens e mulheres que via sempre com um gostoso sorriso em
seus rostos.
Nasci numa cidade quente, onde
descalço e menino corria de sombra em sombra.
Nasci numa fazenda de frente
para uma serra, onde em um boqueirão escondiam-se minhas fantasias e meus
sonhos de menino e aventureiro.
Nasci em um colégio, onde as
crianças usavam roupas limpas, que eles chamavam de “uniformes”. Era uma escola
para nos disciplinar, nos colocar dentro de uniformes. Dentro das salas de
aulas, em carteiras iguais e em ordem, aprendíamos a ler uniformizados.
Nasci nas prisões, ao lado de muitos homens torturados, assassinos
e ladrões. Ao lado de homens que vigiavam outros homens para impedi-los de
fugir.
Nasci ao lado de homens condenados, todos cumprindo penas a que
foram condenados pelos seus crimes ou pelas suas inconsequências e inocências.
Nasci também nos olhos de uma menina que descobriu-me prisioneiros
de suas mãos e de seus lábios.
Onde moro
Em um planeta meio tonto, meio
bobo, muito solitário e incapaz de ser apenas um meu lugar, misturando todos
nós, girando sem parar, sempre fazendo, todos os anos, o mesmo caminho, bobo,
incapaz de transgredir, incapaz de desviar-se de sua rota, um mundo de mares e
de terras, de florestas e de alegrias.
Moro aqui e moro ali. Como não
dizer que moro em Niterói, em Tribobó, e que como jambo na árvore maior do
sítio do Coronel Nicoll.
Moro em Montevidéu, percorrendo
da praia de Ramirez à praia de Pocitos, andando pelo Parque Rodó.
Moro nos igarapés da Amazônia,
em Marzagão.
Colho frutas em Castanhal, moro
na gráfica da igreja em São José de Macapá, atrás das ondas da rádio São José
de Macapá, onde mora meu filho, Tito Neto, que vi apenas menino, dependurado na
grade do parlatório da Penitenciária de Linhares, em Juiz de Fora, e que nunca
mais vi a não ser em fotos.
Ele, a mulher e os filhos, meus
netos, crianças que nunca tive em meus braços e que nunca falaram comigo e com
quem eu nunca falei, de quem ignoro tudo. Isto é dor.
Isto é sonho e pensar. Eu penso
neles quando estou só e eu gosto de estar só para pensar nestas crianças e na criança
que ficou lá atrás, dependurada na grade do parlatório, distante de mim e eu
com medo de que ele se soltasse e caísse no chão.
Ele não caiu. Ele não se
soltou.