quarta-feira, 4 de setembro de 2019

GUINADA NO DESTINO









Resultado de imagem para aeroporto de carrasco montevideo






A chegada em Carrasco 

Rufino Fialho Filho                                  

No olhar era um homem agitado. Passos ágeis. Esperava pelo exilados que desembarcaram. Estava no alto da escada, separado de nós por uma porta de vidro.

 

Não sei, exatamente, porquê, mas depois de muito situar algumas cenas, escolhi esta.

 

No alto da escada estava o almirante Cândido da Mota Aragão, o coronel Emmanuel Nicoll e outras pessoas nos esperando.

 

Do aeroporto de Carrasco, em Montevidéu, fomos conduzidos pela polícia política do Uruguai para a sede do Departamento Central, um imenso e antigo prédio de cor amarela escura, escurecida pelo tempo, que me pareceu ocupar todo um quarteirão, talvez dois.

 

Ali, seríamos fichados, identificados pela polícia.

 

Afinal, éramos de uma maneira diferente, policialesca, conhecidos como bandidos políticos naquele País. Identificação: exilados, homens de esquerda, revolucionários, terroristas, muito jovens (observação de uma senhora de mais de 100 anos, burocrata que já carregaria mais de duas ou três aposentadorias e que se extraia dos móveis e daquelas paredes grossas).

 

Adilson, ainda não chamava as pessoas amigas e envolvidas na luta política de companheiro. Era o centro das atenções da polícia e da imprensa uruguaia.

 

Alto, magro, simpático, ele era o homem que tentou, pensou, matar o marechal presidente Castelo Branco.

 

Há poucos dias, protagonizara uma fuga espetacular de uma das celas do Hospital Central do Exército, no Rio de Janeiro, conseguindo se asilar na embaixada do Uruguai.

 

Os outros exilados que desembarcavam no Uruguai eram os marinheiros Guido e Levino, condenados pela justiça militar brasileira, a quatro anos de prisão, e o meu amigo Gualter de Castro Melo.

 

- Faça a identificação deste - apontou um policial para mim.

 

Era o último a responder um questionário padrão e já tinha todas as respostas decoradas em espanhol. Depois de ouvir os quatro, as palavras que eles erraram já sabia que não erraria, eu queria que aquilo, ali, acabasse logo, pois estava com muita fome. Era noite, mais de 19h, e havíamos deixado a embaixada, no Rio de Janeiro, muito cedo.

 

Enquanto eles respondiam ao questionário comi cinco pedaços de bolo que trouxemos na sacola de Gualter e que eram a minha cota.

 

Eu não os havia comido enjoado com a viagem em um avião militar sem pressurização. Dividimos e não acabou nem a fome e nem a sede de nenhum de nós.

 

Na sala ao lado, aparecia de quando em quando um jovem policial uruguaio me olhava constantemente enquanto conversava com uma pessoa, que eu não via.

 

Deviam conversar sobre algo engraçado, pois riam muito. Talvez o trabalho dele estivesse sendo atrapalhado por aquela outra pessoa.

 

Procurava não o deixar perceber que eu o havia visto e enquanto tentava entender qual seria a sua função. Provavelmente, estivesse nos observando de longe para posteriormente se aproximar de nós, infiltrando no grupo. Consegui guardar alguns traços que poderiam facilitar-me identificá-lo.

 

Era dono de um rosto muito comum entre os uruguaios, mas quando ria, seus dentes apareciam e os caninos estavam encavalados. Seria suficiente.

 

Voltei minha atenção para outro lugar e deparei com um arquivo, cada pasta continha um nome, numa prateleira do arquivo vi quatro pastas com o nome do ex-presidente João Goulart.

 

O ex-deputado Leonel Brizola era assunto para mais de uma centena de pastas em duas prateleiras. Chamei a atenção de Gualter para a diferença do número de pastas entre os dois líderes brasileiros. Gualter ficou nervoso. “Não olhe isto. Não chame a atenção”. 

 

Assim, não pude indicar-lhe uma outra pasta sobre uma mesa com a seguinte anotação em vermelho “U-secreto”.

 

Parecia piada de agente secreto português, daqueles que andam no aeroporto de Lisboa com crachás de “Agente Secreto”. Ou armadilha para capturar curioso.

 

A pasta do U-secreto dava para abri-la caso quiséssemos, seria aquilo um desafio. Era botar a mão na pasta e ganhar, na hora, de presente um baita processo por violação de documentos secretos do País que nos recebia como exilados?

 

Muito primário para ser verdade, mas que coçava, coçava. Naquela sala eram poucas as pessoas comparadas com a nossa chegada e as salas por onde passáramos. De qualquer forma, sabíamos que estávamos sendo vigiados e que tínhamos uma fome de elefante, uma sede de perdidos no deserto sem nenhum vislumbre de Oasis por perto e sem uma miragem.

.

Aqui, mudariam os caminhos de todos nós.

 

Coloquei a pasta do Gualter em cima da mesa ao lado da mesa da pasta do U-secreto. Tiro livros e pacotes de dentro da pasta, espalho sobre a mesa e ordeno para uma nova arrumação dentro da minha bolsa.

 

Abro um livro, como se tivesse encontrado o que procurava - sei que o rapaz que nos observa interrompeu uma gargalhada, o outro também, aquele que nós não vemos - e começo a ler, leio até que as gargalhadas entrem num ritmo normal, acredito que os olhos que nos vigiam se voltaram para a pessoa que agora está ouvindo.

 

Dentro da pasta U-Secreto vi um nome, certamente codificado, e “agente brasileño”. Querem que eu saibamos, querem que descubramos quem é. Apaguei o nome codificado da minha memória, o diabo é que era muito fácil. Quem seria? Era um de nós. Eu, eu tinha certeza que eu não era. Gualter não era. Guido? Levino? Nem. Com eles dois não haveria nenhuma dúvida, eles estavam em fuga de tudo o que significasse qualquer comprometimento político, queriam trazer as famílias para o Uruguai, trabalhar e se afastar “daquela gente complicada”.

 

Adilson? Gualter duvidava dele. Eu também tinha as minhas precárias dúvidas alimentadas pelo Gualter, mas não conseguia ver sentido naquelas suspeitas, além do mais tornara-me amigo e um admirador de Adilson, gostava de ouvi-lo. Não há nada de concreto, dizia. Derrubava todas as suspeitas. Mentalizei rápido um plano: nós cinco cairíamos no fogo, mas quem se queimasse seria o agente. Loucura! Estupidez! Que plano idiota.

 

O policial repetiu, duas vezes e a terceira quase que entrou dentro dos meus olhos.

 

- O seu nome completo, por favor, e o apelido?

 

Depois.

 

- Sua carteira de identidade.

 

Depois.

 

- Vou ler a lei do asilo, assinada pelos países latino-americanos. Depois da leitura, quero que me diga se cumprirá o determinado. Esta formalidade é necessária, mas saiba que o asilo já está concedido pelo governo do Uruguai.

 

 

- Aceito, não há necessidade de uma nova leitura, eu já ouvi este texto quatro vezes.

 

- É uma formalidade e eu tenho que ler - o policial levantou-se e respeitoso reiniciou sua leitura.

 

O policial confirmou meu compromisso e voltou-se para mim

 

- Responda agora o seguinte: Tem amigo em Montevidéu?

 

Olhei para o funcionário e depois vi que os quatro outros asilados estavam distraindo-se com os policiais em uma conversa animada.

 

- Tem amigo em Montevidéu? Insistiu.

 

- Sim, tenho ou melhor tinha...

 

No aeroporto, ao desembarcarmos, o almirante Aragão disse-me que este meu amigo já voltou para o Brasil.

 

- O nome dele?

 

Bobeada.

 

- Josué, disse.

 

- Josué? De que?

 

- Josué de Almeida, disse.

 

(Não sabia em que circunstâncias Moisés Kuperman, o Josué, voltara para o Brasil.

 

O policial fechou as folhas. Foi ao arquivo e voltou perguntando a queima-roupa.

 

- Você conheceu o senhor Moisés Kuperman?

 

- Conheci, sim senhor.

 

- Era seu amigo?


- É meu amigo.

 

 

         02 05 2000