No olhar era um homem agitado. Passos ágeis. Esperava pelo exilados que desembarcaram. Estava no alto da escada, separado de nós por uma porta de vidro.
Não sei, exatamente, porquê, mas depois de muito situar algumas cenas,
escolhi esta.
No alto da escada estava o almirante Cândido da Mota Aragão, o coronel
Emmanuel Nicoll e outras pessoas nos esperando.
Do aeroporto de Carrasco, em Montevidéu, fomos conduzidos pela polícia
política do Uruguai para a sede do Departamento Central, um imenso e antigo
prédio de cor amarela escura, escurecida pelo tempo, que me pareceu ocupar todo
um quarteirão, talvez dois.
Ali, seríamos fichados, identificados pela polícia.
Afinal, éramos de uma maneira diferente, policialesca, conhecidos como
bandidos políticos naquele País. Identificação: exilados, homens de esquerda,
revolucionários, terroristas, muito jovens (observação de uma senhora de mais
de 100 anos, burocrata que já carregaria mais de duas ou três aposentadorias e
que se extraia dos móveis e daquelas paredes grossas).
Adilson, ainda não chamava as pessoas amigas e envolvidas na luta
política de companheiro. Era o centro das atenções da polícia e da imprensa
uruguaia.
Alto, magro, simpático, ele era o homem que tentou, pensou, matar o
marechal presidente Castelo Branco.
Há poucos dias, protagonizara uma fuga espetacular de uma das celas do
Hospital Central do Exército, no Rio de Janeiro, conseguindo se asilar na
embaixada do Uruguai.
Os outros exilados que desembarcavam no Uruguai eram os marinheiros
Guido e Levino, condenados pela justiça militar brasileira, a quatro anos de
prisão, e o meu amigo Gualter de Castro Melo.
- Faça a identificação deste - apontou um policial para mim.
Era o último a responder um questionário padrão e já tinha todas as
respostas decoradas em espanhol. Depois de ouvir os quatro, as palavras que
eles erraram já sabia que não erraria, eu queria que aquilo, ali, acabasse
logo, pois estava com muita fome. Era noite, mais de 19h, e havíamos deixado a
embaixada, no Rio de Janeiro, muito cedo.
Enquanto eles respondiam ao questionário comi cinco pedaços de bolo que
trouxemos na sacola de Gualter e que eram a minha cota.
Eu não os havia comido enjoado com a viagem em um avião militar sem
pressurização. Dividimos e não acabou nem a fome e nem a sede de nenhum de nós.
Na sala ao lado, aparecia de quando em quando um jovem policial
uruguaio me olhava constantemente enquanto conversava com uma pessoa, que eu
não via.
Deviam conversar sobre algo engraçado, pois riam muito. Talvez o
trabalho dele estivesse sendo atrapalhado por aquela outra pessoa.
Procurava não o deixar perceber que eu o havia visto e enquanto tentava
entender qual seria a sua função. Provavelmente, estivesse nos observando de
longe para posteriormente se aproximar de nós, infiltrando no grupo. Consegui
guardar alguns traços que poderiam facilitar-me identificá-lo.
Era dono de um rosto muito comum entre os uruguaios, mas quando ria,
seus dentes apareciam e os caninos estavam encavalados. Seria suficiente.
Voltei minha atenção para outro lugar e deparei com um arquivo, cada
pasta continha um nome, numa prateleira do arquivo vi quatro pastas com o nome
do ex-presidente João Goulart.
O ex-deputado Leonel Brizola era assunto para mais de uma centena de
pastas em duas prateleiras. Chamei a atenção de Gualter para a diferença do
número de pastas entre os dois líderes brasileiros. Gualter ficou nervoso. “Não
olhe isto. Não chame a atenção”.
Assim, não pude indicar-lhe uma outra pasta sobre uma mesa com a
seguinte anotação em vermelho “U-secreto”.
Parecia piada de agente secreto português, daqueles que andam no
aeroporto de Lisboa com crachás de “Agente Secreto”. Ou armadilha para capturar
curioso.
A pasta do U-secreto dava para abri-la caso quiséssemos, seria aquilo
um desafio. Era botar a mão na pasta e ganhar, na hora, de presente um baita
processo por violação de documentos secretos do País que nos recebia como
exilados?
Muito primário para ser verdade, mas que coçava, coçava. Naquela sala
eram poucas as pessoas comparadas com a nossa chegada e as salas por onde
passáramos. De qualquer forma, sabíamos que estávamos sendo vigiados e que
tínhamos uma fome de elefante, uma sede de perdidos no deserto sem nenhum
vislumbre de Oasis por perto e sem uma miragem.
.
Aqui, mudariam os caminhos de todos nós.
Coloquei a pasta do Gualter em cima da mesa ao lado da mesa da pasta do
U-secreto. Tiro livros e pacotes de dentro da pasta, espalho sobre a mesa e
ordeno para uma nova arrumação dentro da minha bolsa.
Abro um livro, como se tivesse encontrado o que procurava - sei que o
rapaz que nos observa interrompeu uma gargalhada, o outro também, aquele que
nós não vemos - e começo a ler, leio até que as gargalhadas entrem num ritmo
normal, acredito que os olhos que nos vigiam se voltaram para a pessoa que
agora está ouvindo.
Dentro da pasta U-Secreto vi um nome, certamente codificado, e “agente
brasileño”. Querem que eu saibamos, querem que descubramos quem é. Apaguei o
nome codificado da minha memória, o diabo é que era muito fácil. Quem seria?
Era um de nós. Eu, eu tinha certeza que eu não era. Gualter não era. Guido?
Levino? Nem. Com eles dois não haveria nenhuma dúvida, eles estavam em fuga de
tudo o que significasse qualquer comprometimento político, queriam trazer as
famílias para o Uruguai, trabalhar e se afastar “daquela gente complicada”.
Adilson? Gualter duvidava dele. Eu também tinha as minhas precárias
dúvidas alimentadas pelo Gualter, mas não conseguia ver sentido naquelas
suspeitas, além do mais tornara-me amigo e um admirador de Adilson, gostava de
ouvi-lo. Não há nada de concreto, dizia. Derrubava todas as suspeitas.
Mentalizei rápido um plano: nós cinco cairíamos no fogo, mas quem se queimasse
seria o agente. Loucura! Estupidez! Que plano idiota.
O policial repetiu, duas vezes e a terceira quase que entrou dentro dos
meus olhos.
- O seu nome completo, por favor, e o apelido?
Depois.
- Sua carteira de identidade.
Depois.
- Vou ler a lei do asilo, assinada pelos países latino-americanos.
Depois da leitura, quero que me diga se cumprirá o determinado. Esta
formalidade é necessária, mas saiba que o asilo já está concedido pelo governo
do Uruguai.
- Aceito, não há necessidade de uma nova leitura, eu já ouvi este texto
quatro vezes.
- É uma formalidade e eu tenho que ler - o policial levantou-se e
respeitoso reiniciou sua leitura.
O policial confirmou meu compromisso e voltou-se para mim
- Responda agora o seguinte: Tem amigo em Montevidéu?
Olhei para o funcionário e depois vi que os quatro outros asilados
estavam distraindo-se com os policiais em uma conversa animada.
- Tem amigo em Montevidéu? Insistiu.
- Sim, tenho ou melhor tinha...
No aeroporto, ao desembarcarmos, o almirante Aragão disse-me que este
meu amigo já voltou para o Brasil.
- O nome dele?
Bobeada.
- Josué, disse.
- Josué? De que?
- Josué de Almeida, disse.
(Não sabia em que circunstâncias Moisés Kuperman, o Josué, voltara para
o Brasil.
O policial fechou as folhas. Foi ao arquivo e voltou perguntando a
queima-roupa.
- Você conheceu o senhor Moisés Kuperman?
- Conheci, sim senhor.
- Era seu amigo?
- É meu amigo.
02 05 2000