A arte de
caminhar
Rufino Fialho Filho
1.
Dos peripatéticos até os carteiros
Não há outro meio de levar a ideia, a notícia, a carta, senão
caminhando e quando se caminha, em qualquer caminho, até no espanhol, se
caminha para ligar, religar, fundir, dizer, transmitir, criar, anunciar,
interpretar
Caminhando contra a neurose
Aqui, é o relato da experiência da terapeuta Anna Sharp que
transformaria a experiência de caminhar numa forma de autoconhecimento e
reflexão.
Anna criou um trabalho cuja chave é ensinar a cada um a aprender a
conhecer os sinais do seu caminho
Caminhar, caminhar e caminhar pelo menos durante 2 horas para o
organismo fabricar a endorfina, droga segregada pelos tecidos nervosos que é expansora da consciência.
O andarilho
Nietszche
Dos Poemas, 1871-1888
Um andarilho vai pela noite
(Um andarilho anda apenas pela noite?)
A passos largos;
(andarilho que anda rápido, tem objetivo, lugar para chegar,
andarilho não)
Só curvo vale e longo desdém
São seus encargos.
A noite é linda -
Mas ele avança e não se detém.
Aonde vai
seu caminho ainda?
Nem sabe
bem.
Um passarinho canta na noite:
“Ai, minha ave, que me fizeste!
(Minha
estrela!)
Que meu
sentido e pé retiveste,
E escorres
mágoa de coração
Tão
docemente no meu ouvido,
Que ainda
paro
E presto atenção?
-
Por que me
lanças teu chamariz?” -
A boa ave se
cala e diz:
“Não
andarilho! Não é a ti, não,
Que chamo
aqui
Com a canção
-
Chamo uma
fêmea de seu desdém -
Que importa
isso, a ti também?
Sozinho, a
noite não está linda -
Que importa
a ti? Deves ainda
Seguir,
andar,
E nunca,
nunca, nunca parar!
Ficas ainda?
O que te fez
minha flauta mansa,
Homem da
andança?”
A boa ave se
cala e pensa:
“O que lhe
fez minha flauta mansa,
Que fica
ainda? -
O pobre,
pobre homem da andança!”
O homem da andança
Tcioran e
Nietszche
Naquela
esquina, ele dominava a cidade
e o céu
O que quer
ainda este pobre
homem da andança?
Um andarilho vai pela noite,
diz Nietszche
Um andarilho não anda apenas pela noite
Anda no amanhecer
de Zaratustra
entre todos e ninguém
não a passos largos
Andarilho que anda rápido tem objetivo, lugar para chegar.
Andarilho, não!
Andarilho fala com o vento
e com as aves
“Ai, minha estrela, que me fizeste!
aceleras meu
caminhar,
atropelas
minhas pegadas
e não
corres, voas
parada, sempre no mesmo lugar
e eu em
todos os lugares,
sempre no
mesmo lugar
Eu percorro
caminhos
e estrelas?
2
O andarilho
“Andarilho é
o homem, seu dever é vagar
Para
descobrir em outro lugar um lar imutável.”
As palavras da loucura, Schiller
Excluído da família, um sem-família, caminha pela cidade,
completamente solto, livre....
Não sei se livre, desarvorado, em meio às árvores das avenidas,
com mil sofrimentos, mil pensamentos.
Eu pisava as ruas da capital como todos os outros andarilhos as
percorrem, com o mesmo sofrimento de todos eles, olhando pessoas, não olhando,
olhando casas, prédios, lugares, não olhando, estando lá, passando por lá (lembrando-me
de Dostoievsky de Noites Brancas e de Steimberg de um livro de histórias sobre
um vale e a sua cidade - principalmente a aproximação).
As casas e seus habitantes, a vida e as suas manifestações, as
alegrias e as tristezas.
Caminho em direção permanente ao outro; muitas vezes percorria
distâncias incríveis apenas dentro de mim e assustava-me quando descobria onde
havia chegado, o caminho que percorrera sem ver, sem ser abordado e sem ser
atropelado (exatamente isto: é o sobrevivente do acaso).
Aos poucos percebia meus parceiros, os outros andarilhos, muitos
tão profundamente dentro de suas vidas e de suas histórias que os imaginava
maravilhosos embora soubesse, como poucos, a imensa profundidade daquelas
descidas - este é, não sei se, o mais desastrado de todos os mergulhos.
Percebia-os pelas roupas, pelos cheiros, barbas grandes, pelo
caminhar (vi neste trajeto muitos ex-andarilhos e perdi de vista alguns
andarilhos, não aqueles que faziam sempre, infinitamente os mesmos percursos,
os mesmos trechos).
Sentia-os na não solidariedade, na indiferença, mergulhados em
seus mundos, às vezes, lado a lado, cansados, em um banco de praça,
comunicávamos nossos silêncios, nossas profundidades, perdidos e
dostoievskianamente humilhados e ofendidos ou não.
Captava-os, amigo, nas suas sombras e nos seus lugares, sabia-os por
locais baldios e em podridões, onde outros homens não aventuram se aproximar,
narizes sensíveis e almas limpas.
Capturava-os em mim, na minha aventura para o descobrimento das
avenidas largas e das imensidões dos céus nos vales de uma cidade comprimida
pelas construções e pelo cinza de suas paredes.
Aqueles que conhecerão os percursos possíveis das mentes sofridas,
um dia dirão de que é capaz este imensurável mergulho. Se suas cabeças caem
para o chão, isto não significa nada. Se falam sozinhos, isto não significa
nada. Para os estudiosos do cérebro hoje pode significar uma alucinação, um
complexo diálogo com o inferno e/ou com o céu.
“... o pobre
irmão se levantava, a boca apodrecida,
os olhos arrancados - tal como ele se sonhava!
-
e me
arrastava pela sala,
berrando seu
sonho de idiota aflição”.
Arthur
Rimbaud
3
O homem
inacabado
“A metade que parecia dele ficou
a esperar a
outra,
que se
forjava na cidade dividida.
Não
conseguia juntá-las...”
Cadernos de
João, de Aníbal Machado
Eu conheci um homem inacabado. Era um sujeito altivo. Ele não
buscava nem mesmo a sua outra metade,
que sabia existir. Isto já seria demais. Buscava-se quase na totalidade do
mínimo ser. Qualquer traço já seria alguma coisa, um ponto de partida. Um traço
de caráter. Uma renúncia. Uma glória. Nada.
Não era nem mesmo metade e nem mesmo inacabado. Absurdo seria
dizer que este homem não conseguiria jamais ser nem mesmo um homem começado.
Como não é esta a linguagem que falo agora, digamos que este homem que eu
conheci muito de perto tenha sido um projeto, um homem projeto, um homem
projetado, pensado e que quase começou. Uma construção imaginada, projeto de
arquiteto, diante do papel branco, a desenhar. Cada pedaço encontrado pouco
preenchia. Assim, tudo era incompleto, inacabado, insustentavelmente
inapelavelmente inacabado porque não completamente começado, nem mesmo
começado.
Sua tragédia ou seu talento estava em ter tomado conhecimento
desta impossibilidade de completar-se, da sua impossibilidade de começar. Ele
aceitou o inacabado e aventurou-se em supor-se completo, na possibilidade de
visualizar-se como metade em busca de uma outra metade, quis que a metade
existente tornar-se conhecida de si. Incrível aventura. Conhecer-se a si
mesmo... pela metade ou pelo menos a metade ou quase a metade.
Examinou todos os homens completos possíveis, como examinou
modelos plutarquianos e não plutarquianos além dos modernos modelos virtuais.
Mais do que uma escalada a mil Everest - fato possível - era chegar ao cume da
metade de si mesmo - fato impossível - mas imaginável, potencializável, não por
ele, mas por um homem, ou por todos, algum dia.
“Uma obra
consumada não seria necessariamente
acabada e uma obra acabada
não seria
necessariamente consumada”.
Baudelaire
citado por Malraux,
citado por
Merleau-Ponty
“A cultura jamais nos dá, pois, significações absolutamente
transparentes, a gênese do sentido jamais se conclui”.
“Ora, se expulsarmos do espírito a ideia de um texto original, do qual a linguagem
seria a tradução ou a versão cifrada, veremos que a ideia de uma expressão completa é um contrassenso, que toda a
linguagem é indireta ou alusiva e, se
quisermos, silêncio”.
Maurice
Merleau-Ponty, in A
linguagem indireta e as vozes do silêncio, Editora Abril
“Como sempre em arte, fingir para tornar verdadeiro”.
Sartre citado por Merleau-Ponty
“O poeta é um sofredor,
finge que é dor, a dor
que deveras sente”
Fernando
Pessoa
4
A água sobe no rio Solimões e entra nas cidades à margem, as casas
são invadidas e os homens sobrevivem espremidos entre o piso de madeira de suas
casas de palafita e o teto. Eles foram subindo os assoalhos à medida que a água
subia. Agora estavam a menos de um metro do teto. Não se prepararam e nem se
preparavam para depois do teto. Não se afastavam de suas “coisas”, a casa, os
utensílios domésticos, as roupas, os mantimentos, o dia a dia em cada peça
conquistada.
5
O silêncio
de pai
Depois da segunda operação e de ficar com uma abertura no
intestino, colostomizado, pai não mais fala, a voz não sai. Explicação médica:
teria sido em virtude do processo de entubamento de oxigênio durante a operação
e que afetara suas cordas vocais.
Não consigo entender seu silêncio. Parado na sua frente, olhando o
seu corpo magro, pele e osso, braços finos, ombros à mostra, rosto seco, pai se
cala para tudo.
Acredito que ele optou por calar, falar para ele tornou-se
cansativo, sem sentido, impossível ou desnecessário. Agora seus diálogos estão
nos olhos - se quisermos ouvi-lo devemos olhar em seus olhos.
Alguns dias depois, pai levantou falando normalmente. Recuperara a
voz. Naquele dia, tornou-se crítico e ácido com Mirtes, “aqui, eu mando”,
percorrendo um caminho em que seu rosto revelava seu inconformismo.
Ele não sustentou durante muito tempo a sua voz normal e não durou
nada a sua vontade de manifestar-se. Calou mais uma vez. Já era uma voz cansada, já era um
raciocínio quebrado por esquecimento, mais esquecia do que lembrava, já era uma
voz diante de uma porção de vozes de jovens e de pessoas maduras, que se
expressavam, com talento, sem esquecimentos e com vida.
Ele calou-se e ele, se ouvia, pouco ouvia.
6
O homem adia a vida
Viverei amanhã
Amanhã, terei uma casa
Amanhã, viverei
Adiando a vida
Agora é lutar,
ralar, se ralar
Vou viver no final de semana
Aí, olho o sol e o céu
Depois é trabalho
ou não trabalhar
É não viver
Vou viver no final do mês
aí vou ao supermercado
Vou adiando a vida
Minha mulher está aí
amanhã vou amá-la
Vou adiando a vida
sem entender
o que é a vida
7
Veja, este homem que caminha
apressado, passos curtos, sua pasta
debaixo do braço
Este é ele
o homem arquivo
Chama-se Carlos
Carlos Felipe Menescal
Ele tem todos os documentos
É um homem arquivo
Veja como ele caminha
É o caminhar de quem recolhe
todos os papéis, todos os dados
para a sua grande pesquisa
é pesquisar, arquivar, sonhar,
enquanto isto, o lixeira escreve
suas histórias e ganha prêmios,
transforma-se, torna-se talento
enquanto isto, a mulher desespera-se
e à noite deita-se ao lado do homem metal
Carlos ergue-se sobre todos
e arquiva tempos e nomes
datas e tudo o que sonhas,
em todos os tempos,
o homem arquivo
arquivou a vida
8
As questões
de um homem de oitenta
Quando eu crescer, eu serei... serei a flecha veloz, o touro bravo
ou sentado, eu serei médico, um homem das almas e dos sonhos, o intérprete da
loucura e de todas as alucinações. Quando eu voltar de Kiev, traçarei outros
caminhos, nada, nada me amarrará. O que me amarra?
Me amarra a placidez de Hemengarda, a viuvez de Estergilda, a voz
rouca de Lenora, tudo me segura nesta cidade, o rio destruído e ainda bela
paisagem, correndo entre pedras em seus mil quilômetros de gritos indeléveis. O
que me amarra é o sonho de Petrarca em busca de sua Beatriz. (Dante fique esperto). Não posso me prender em séculos que não me
dizem mais nada. O que faço nos trecentos se nem em inferno posso sonhar?
Quando eu crescer...?
I.
“Absurdo seria dizer que este homem nem mesmo era um homem
começado”.
Homem individuado é um ser único, total, completo. Individuado em
que? Único em que? Completo em que? É indivíduo enquanto é um ser especial,
diferente, não repetição, não referência de um, embora passível de referência
para outro. Ser indivíduo, ser especial, significa que é e esgota-se como ser.
Assim, não haveria possibilidade de não ser começado. Ao ser já é.
Impossível de ser projeto? De querer ser
algo, supostamente, criado a partir da vontade, de dados, de conceitos, de
hipóteses estudadas, descartadas e aproveitadas, de possibilidades, da razão.
Não há querer no ser, se o ser é, se ser já é, se se totaliza-se apenas no ser,
na simples essência de ser.
Se um homem existe , ele o é integralmente homem e o seu destino,
suas possibilidades, suas aventuras e suas totalidades. O homem ao ser, acaba-se;
ao existir já é. Se não é individuado está aberto, pronto, a todas as
individuações e/ou coletivizações possíveis.
Ao ser seria dada todas as possibilidades existentes na
concretização do ser homem, ao homem seria dada todas as possibilidades de ser
um homem feliz em meio a todas as condições adversas e a todo um destino
adverso. Não importa, há a possibilidade e o ser feliz ou o ser infeliz está em
aberto. Vale a vontade.
9
- Meu nome é Nestor Nogueira Filho, tenho mais de 50 anos, 53, sou
hoje, agora, um homem sozinho. Estar só tem a complexidade da solidão e a
solidão a complexidade do necessário. É um homem e o deserto. É um homem com
saudades de si mesmo. Por que? Tive
muitos filhos, mas acredito que não fui um bom homem de família. Nem chefe de
família, me recusava a relação de chefia com pessoas íntimas e chegadas. Nem
pai de família, queria ser apenas um da família. Isto é, não se pode dizer,
categoricamente, que eu não tenha sido um bom pai, me esforcei e me esforço
muito por isso.
Pode-se, entretanto dizer categoricamente que, muitas vezes,
muitas vezes, não agi em função da família, da sobrevivência do grupo
organizado e estabilizado em torno de pessoas. Esta questão me intriga. Gosto
dos meus filhos, de todas as minhas ex-mulheres. Nas relações, as crises
sucessivas atingiram pontos de difícil superação e o seu final foi um
acontecimento, aparentemente, muito natural.
Explodiu o grupo em uma manhã. Não foi cada um para um lado. Foi
todos para um lado e eu para o outro lado, para fora.
Saí de casa, saí da minha casa, saí da casa onde morei uns bons
anos, saí da casa onde estão os quartos dos meus filhos e a cama da minha
ex-mulher. Ela já não era mais a minha mulher, mas ainda era uma pessoa
querida, admirada e sempre perdoada, valia tudo para ela e era natural (?) que
assim fosse, pois assim caminhávamos.
A partir daí os laços foram se esgarçando, meus filhos, por mais
insistência, por mais presença, foram se tornando pessoas estranhas, talvez eu
não compreendesse o crescimento deles, eles também sofriam e cresciam.
Amadureciam? Isto é muita covardia. Enfim, hoje, três anos depois, sou um homem
sem família.
Não que não tenha procurado a minha estabilidade e as minhas novas
emoções, como não quer dizer que não tenha procurado refazer-me, o que sempre
havia feito. Procurei. Com uma mulher, passei a reconstruir-me. Aí talvez
resida a dificuldade de hoje.
Não tenho conseguido esta reconstrução, talvez porque eu me
procure e na reconstrução a lógica que impera é a lógica do conhecido e não a
lógica do novo, do desconhecido. Cada um para um lado.
Uma criança nasceu, uma nova filha. Ela está aí, desenvolvendo.
Pela primeira vez, faço o que sempre mais gostei de fazer, estar
perto, demasiado perto do crescimento de uma criança. Ela se desenvolve e eu
vejo. Ela é hoje a minha única tábua de salvação. E a tempestade já é tufão. No
oceano, estou sozinho, sem nada, senão ondas e abismos, quedas e escalas.
É um homem e o deserto. É um homem com saudades de si mesmo.
Saudades de alguém que ele viveu, imaginou viver, criou e/ou a expectativa
futura de ser.
A solidão do deserto quando não produz profetas, produz homens. É
a dimensão verdadeira do homem, suas reais possibilidades.
Traduzir solidão por dor, desespero, é caracterizar uma demanda: a
demanda do outro.
A solidão do outro em si não é solidão, é ser e ser o outro, há
quem não consegue ser só, só é ser se o outro existe, o outro passa a ser sua
cara, mais ainda sua pele, seu suor.
A tragédia só ganha todos os ares de grandiosidade, quando o ser
só consegue ser pela cabeça, pelos pensamentos do outro: fato muito comum nas
religiões e nas relações simbióticas com os mitos e astros, com os sonhos e
dogmatismos.
10
Tcioran e eu
Apud Borges
Eu conheci Tcioran ainda menino, menino preto queimado de sol,
correndo descalço pelas ruas da cidade de Teófilo Otoni. Via aquele menino de
longe, quase sempre de muito longe, pois são ainda esparsas as notícias que eu
tenho dele.
Lembro dele deitado no chão da varanda em conversas demoradas com
as nuvens, lendo nos céus gente e animais em formas e composições às vezes
belas, outras monstruosas. (A palavra
que diz isso)
Também deitado sobre uma mesa enorme no terreiro de secar café, à
noite, segurando uma montoeira imensa de estrelas no céu, até se fixar em uma e
era difícil. Lendo naquele céu imenso e iluminado pelas estrelas histórias
fantásticas e deliciosas.
Lembro do menino do porão e de suas muitas fantasias, cada canto
do porão, organizando os espaços. Debaixo da casa real uma casa iria surgir
para amar e para guerrear.
Aquele menino e suas amizades com os gatos, cachorros, cavalos e
bois. A tragédia do enterro do gato, quando os atores levavam a sério a
história e o gato não. Ele reagiu
apavorado não aceitou seu enterro.
O menino negocia com os ciganos e parte para explorar as
redondezas da cidade, as proximidades da casa, as proximidades do colégio até a
grande aventura da estrada.
O menino e o cinema, com os seriados semanais no cine Poeira, Roy
Roges, Ulysses, Zorro, Super Homem, depois do filme, o seriado e a continuação
na próxima semana com o artista principal ou um seu aliado correndo risco.
Lembro do menino na rua das Putas com as puas velhas e com a puta
gordona.
Acompanhei este menino pelas estradas de Teófilo Otoni a Pavão.
* Com Tcioran aconteceram muitas coisas, muitas aventuras, muitas
paixões e mais do que tudo uma fabulosa aventura na imaginação, além do mais
complicado uma persistente e dolorosa interrogação de si e de ideias, de
pessoas e de sonhos. Pude acompanhar alguma coisa de perto. Vou falar do que vi
e dos nossos diálogos, conversei algumas vezes com Tcioran, do que anotei tenho
memória, do que apenas falamos em nossas muitas caminhadas não tenho mais nada.
* Eu caminhei Belo Horizonte milhares de vezes, mil ruas e
avenidas, subi e desci muitos morros e ainda não conheço alguns canto da cidade.
Se me surpreendo dentro de uma casa, cuja fachada sei de cor,
seria capaz, como um bom detetive, de falar sobre a estrutura da casa,
disposição dos quartos, da sala, aventurando-me sobre seus primeiros donos,
seus primeiros inquilinos e até mesmo passar a mão em uma parede onde uma
mocinha deu seu primeiro beijo na boca de um namorado perfumado e suado.
Estou perdido e distribuído por toda a cidade, se meu perder não
for total é porque a própria cidade me acha e me recolhe ou acolhe. Se reclamo
das minhas caminhadas repetidas, mil vezes, para lá e para cá na mesma avenida
dos Andradas, eu dou o troco e falo de cada milímetro do seu chão, de cada
perspectiva do seu vale, de todas as frases de seus imensos cartazes, ditos
inteligentes e bons de venda porque se vê e se lê.
* De Tcioran tenho notícias constantemente são os amigos comuns e
suas ex-mulheres (ele não chamava-as de ex-mulheres, dizia minha mulher Isabel
de Teófilo Otoni, minha mulher Isabel de 68, minha mulher Isabel de Belém, não
existia ex- ou passado para ele em se tratando de amor e de vida).
Vejo seu nome sendo discutido em rodas de políticos, uns a favor
falando com euforia e alegria, outros contra, outros detratores, outros inimigos elogiando para
fazer aparecer o ridículo das posições de Tcioran ou as suas contradições,
apontando com fúria seus pés de barro. Vejo seu nome em uma lista de
professores ou em um dicionário biográfico de jornalista do Estado de Minas
Gerais.
Eu e Tcioran.
Agradam-me uma boa conversa, um bom amigo, ouvir relatos dos
antigos e as experiências dos jovens, a coragem e a audácia dos jovens, os
erros e a visão que os jovens têm de seus erros, principalmente as bem
humoradas, os livros de aventura e os livros dos filósofos; Tcioran compartilha essas preferências, mas de um
modo vaidoso que as transforma em atributos de um ator.
Qual seria a nossa relação? Eu acompanho a vida de Tcioran e
sempre estive com ele em todos os seus momento. Não há nem conflito e nem
hostilidade, como não há acordo e nem desacordo. Nossa relação se pauta, da
minha parte, pela observação, e o que se pode dizer de alguém e o que se pode conhecer alguém pela
observação, por uma e outra conversa, por um e outro encontro, em sua maioria,
ocasionais.
Observo essa obsessão de Tcioran pela palavra, sua insistência em
escrever, em se dizer, intimamente, poeta, e em usar da poesia para apenas
sobreviver.
Observo e leio tudo o que ele escreve, porque ele insiste em me
mostrar. Ainda não posso avaliar. Ele está em permanente intervenções em tudo o
que pensa, fala e escreve, reavalia o feito e reinterpreta cada fato, ato ou
pessoa.
Reescreve permanentemente, ele é só um reescrevedor em busca da
clareza e da síntese, da pouca palavra. Essa vulcanização do seu viver e fazer
é que me empolga e me justifica.
Ele ainda não publicou, nem pensa concretamente nesta hipótese,
nem teme o que possa acontecer caso tudo venha a se perder. Não porque não
considere válidas as suas páginas. Não fechou nenhuma avaliação e teme, treme,
ainda diante do universo planejado, das ideias concebidas e dos sonhos
anotados.
Eu estou
destinado a perder-me, definitivamente, e só algum instante de mim poderá
sobreviver em Tcioran.
Tcioran desenvolveu elementos de sobrevivência nos relacionamentos
e, embora não concorde com nenhum deles, eles devem ser melhor examinados,
como, por exemplo, “seu perverso costume de falsear e magnificar”.
“Spinoza
entendeu que todas as coisas querem perseverar em seu ser; a pedra eternamente
quer ser pedra e o tigre um tigre”.
Tcioran não, ele quer ser Borges, ele quer ser Shakespeare, ele
quer ser Marx, quer ser Sartre, quer ser Kierkegaard, quer ser Heráclito e
Heidegger, quer ser Mao e Che, quer ser sempre o outro, está sempre copiando,
como faz agora, quer ser a pedra e/ou o tigre, mas sobretudo quer ser Espinosa.
Querer perseverar em seu ser, ele entendeu em ser depois dos
diálogos com aquelas inteligências, com aqueles espíritos, com aquelas
consciências e com aqueles seres fundadores do homem que se constrói aos
poucos, muito aos poucos nestes longos tempos de se ser e de se fazer o homem.
Eu permanecerei eu e jamais serei Tcioran. Sei que sou alguém.
Reconheço eu e ele, minha participação no seu trabalho, minha estreita colaboração
com o seu pensar e ser. Eu me encontro em muitas de suas palavras, em quase
todos os seus gestos. A identificação é maior do que imagino, pois me percebo
até no seu olhar e quando compõe seu melhor poema. Nunca tentei livrar-me dele.
Muitas vezes nos afastamos mas a troca de correspondência era mais
do que diária, era um escrever contínuo, um entender-se pela razão sem a razão.
Muitas vezes percebi que Tcioran tinha muito mais domínio sobre mim do que eu
poderia aceitar, assim pude perceber que muitas das minhas análises e visões de
sua vida na realidade eram visões e análises produzidas e estimuladas a partir
dele. Decodifiquei isto e tranqüilizei-me.
“A minha
vida é uma fuga e tudo eu perco e tudo é do esquecimento, ou do outro”.
Conto de “O
fazedor” , Jorge Luiz Borges Obras Completas Volume II, Editora Globo
Borges e eu
Ao outro, a Borges, é que sucedem as coisas. Eu caminho por Buenos
Aires e me demoro, talvez já mecanicamente, para olhar o arco de um vestíbulo e
o portão gradeado; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo seu nome em uma
lista tríplice de professores ou em um dicionário biográfico.
Agradam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século
XVIII, as etimologias, o gosto do café e a prosa de Stevenson; o outro compartilha
essas preferências, mas de um modo vaidoso que as transforma em atributos de um
ator.
Seria exagerado afirmar que nossa relação é hostil; eu vivo, eu me
deixo viver, para que Borges possa tramar sua literatura, e essa literatura me
justifica. Não me custa nada confessar que alcançou certas páginas válidas, mas
estas páginas não podem salvar-me, talvez porque o bom já não seja de ninguém,
nem mesmo do outro, mas da linguagem ou da tradição.
Além disso, eu estou destinado a perder-me, definitivamente, e só
algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vou cedendo-lhe
tudo, embora conheça seu perverso costume de falsear e magnificar.
Spinoza entendeu que todas as coisas querem perseverar em seu ser;
a pedra eternamente quer ser pedra e o tigre um tigre. Eu permanecerei em
Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas me reconheço menos em meus livros
do que em muitos outros ou do que no laborioso rasqueado de uma guitarra.
Há alguns anos tentei livrar-me dele e passei das mitologias do
arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de
Borges e terei que imaginar outras coisas. Assim minha vida é uma fuga e tudo
eu perco e tudo é do esquecimento, ou do outro.
Não sei qual dos dois escreve (ou
escreveu) esta página.
11
"A marca característica
do gênio é a lembrança universal de todas as suas experiências. Através da
lembrança, a experiência vivida se torna atemporal. A memória transcende o
tempo. E aquilo que transcende o tempo é somente aquilo que interessa o
indivíduo, aquilo que tem significado para ele, em suma,aquilo a que ele dá
valor. É o valor que cria a
atemporalidade. Assim, o gênio é o único homem atemporal. Com seu desejo apaixonado
e urgente pela atemporalidade, ele é o homem com maior desejo pelo valor.
Exemplo de gênios são o artista e o filósofo, que criam uma apresentação do
mundo que é imperecível, imutável e atemporal. A memória se relaciona com a
lógica e a ética. Por um lado, a memória constitui a base para o pensamento
lógico. Assim, se o homem fosse desprovido de memória, ele perderia a
capacidade de pensar logicamente, pois esta possibilidade está encarnada num
meio psicológico. A memória constitui uma parte necessária da faculdade lógica.
A lembrança contínua nada mais é do que a expressão psicológica do princípio de
identidade. Por outro lado, a base de todo erro na vida é o fracasso da
memória. Somente ela garante o arrependimento. Todo esquecimento é imoral.
Nesta perspectiva, a verdade deve ser considerada como valor real da lógica e
da ética. Assim, a memória não constitui um ato lógico e ético, mas é um
fenômeno, simultaneamente, lógico e ético"
"Sexo e caráter, Otto Weininger, citado por Paulo
Roberto Margutti Pinto, in "Aspectos da influência de Weininger sobre
Wittgenstein, Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 24 n77,1997, página 203
12
-
Eu voltei de
um outro mundo...Então, você quer saber o que existe do outro lado da vida...
-
...Muitos
tiveram a mesma experiência que eu, muitos que morreram e que voltaram a viver.
Depois da morte, o que eu vi? O que é o outro lado. O outro lado era eu...
-
...Eu estive
comigo todo este tempo. Era eu e eu sozinhos. Estive apenas comigo, horas e
horas...
-
...passei
mal, vomitei, senti cheiros horríveis. É triste, você dormir e acordar só com
você mesmo. Horas e horas, você olha para o lado e quem está ali? Você. Do
outro lado, a mesma coisa, no teto, no chão, em todos os lugares...
-
...Você
descobre que mais de duas horas com você mesmo, é preferível a morte. Mas eu
estava morto, não havia escapatória para mim, nenhuma fuga possível.
-
A minha
morte era eu estar diante de mim. Terrível condenação! Como fazer? O jeito foi
voltar a viver...
-
E viver é
isto, é a possibilidade de você encontrar o outro, poder encontrar o outro,
poder dialogar.
13
Identidade,
a questão do
ano 6528
"Trilhões de seres humanos habitam o espaço e sobrevivem,
mutiplicando-se e desenvolvendo novas técnicas genéticas de multiplicação, pois
mesmo com as últimas possibilidade de prolongamento da vida, com homens já
atingindo até 580 anos de idade e mesmo com o mínimo de desperdício de espermas
e óvulos, as necessidades de um maior número de homens e mulheres, ocupando o
vasto espaço, novas áreas estão sendo implantadas a cada 50 anos e a demanda de
homens pode atingir a cerca de 50% da atual população galática. Isto é, a cada
meio século registra-se a carência de cerca de 1 trilhão e 500 milhões de seres
humanos.
"A conquista do ano 2025, que revolucionou a reprodução
humana através da sobrevivência de todos os espermatozóides em todas as
ejaculações, ainda repercute no Universo.
"A valorização do homem, do cérebro e das suas
potencialidades intrínsecas na 23ª Revolução Científica permitiu,
ainda, que a idade média pulasse dos míseros 150 anos para os 556,8 anos
atuais.
"Em meio à expansão da população explode a monumental
importância da questão das individualidades. Em meio a trilhões de seres, o um
ganhou muito mais força e projeção.
"O respeito às individualidades é uma das denominadas
potencialidades intrínsecas, com fortes repercussões no conjunto. Todos
contemplam o um. O ser é vital para todos, pois a inteligência foi a grande
descoberta das 23ª Revolução."
"O
homem não é uma ilusão", Gregório P. Pasquali, Edições Cidades, 1850
14
O andarilho
Jesus
“Perambulo
através
dos dias
como uma puta
em um mundo sem trottoirs”
Emil Cioran
José Luís de Jesus, 65, andarilho
17 (?) anos fora de casa, 6 anos nas ruas de BH
Saiu de SP, em 82, viveu em vários lugares e exerceu diversas
profissões, músico, caixeiro viajante etc. (1999)
“Quando abandonei tudo é porque estava desesperado e achei que a
minha vida não tinha mais sentido. Minha mulher me acompanhava em todos os
momentos e eu fugi para evitar as
lembranças. Depois, as coisas foram ficando difíceis e, quando eu decidi
voltar, não tive condições”.
Seria a fuga das lembranças do amor, seria a fuga dos dias de
felicidade, da insuportável ausência, o medo de acordar e a certeza de que
acordaria.
Duro não é deixar de ser feliz, duro é não poder compartilhar a
felicidade, duro é não mais poder amar, saber que nunca mais terá junto de si a
sua mulher amada.
Como ficar dentro daquela casa, dentro do lugar da felicidade?
Como conversar com pessoas que conheceram a nossa felicidade?
A impossibilidade de não lembrar - a vida só lembrança e lágrimas.
“Abandonei tudo
- estava desesperado
- minha vida não tinha sentido
- Minha mulher me acompanhava em todos os momentos - fugi para evitar as lembranças
- as coisas ficaram difíceis
- quando eu decidi voltar, não tive condições”.
Sem dinheiro, José Luís ligava para uma das filhas, (Maria Honório
de Jesus, 41) dizia que estava bem, tinha emprego e que um dia voltaria para
ver todos.
O número do telefone da filha era a sua única relíquia.
Maria de Fátima Cardoso de Oliveira, funcionária pública,
encontrou com José Luís, em frente à PBH, e restabeleceu o contato dele com a
família.
Banho tomado, roupa limpa
“É revoltante saber que meu pai passou por tanta dificuldade e
tanta miséria” disse a filha.
O que faltou saber:
1. Por onde andou José Luís? Quais foram as profissões que
exerceu? Como foram as adaptações a cada atividade? Como e onde trabalhou?
Descrição dos locais de trabalho e das cidades? Como viajava nas várias
condições? Os caminhos percorridos. O dia a dia, em vários momentos? O que
foram os primeiros anos e o que foram os últimos anos. Os anos mais difíceis.
As pessoas que conheceu. As mulheres.
2. O porquê da fuga - a mulher. Quem era? Como viveram? Quais são
as lembranças mais marcantes dela? O dia em que não agüentou as lembranças? Por
que decidiu fugir - momento - o fato - a gota d’água?
3. Os seis anos em BH. Uma descrição da cidade e das ruas de BH.
Sua primeira impressão. O dia a dia das ruas de BH. Quem é quem na rua?
4. A comida. O que comer quando não tem nada para comer?
5. As situações difíceis, complexas e como foram resolvidas?
6. Reflexões
Sobre o passado - infância e famílias
Sobre os anos vividos
Sobre a família
Sobre as pessoas conhecidas
Sobre amigos e amizade
Sobre o futuro
8. Fugir das lembranças - fugir de quais lembranças - por que tudo
o que lembra o amor feliz gera desespero?
9. Maria de Fátima Cardoso de Oliveira, funcionária pública,
encontrou o andarilho e fez o contato do pai com a filha. Quem é esta mulher
que ousou conversar com um mendigo, por que, o momento da primeira conversa,
por que tomou esta decisão, o que a levou a acreditar em um homem maltrapilho,
um mendigo, um homem fedorento. A versão de Maria de Fátima e a história de
vida dela, de sua família e de sua infância.
(Estado de Minas 01.07.99 Matéria de Vanessa Jacinto)
15
2km + 2
km 8h30
No dia 7,
2km + 2km, 10h
No dia 6,
1km + 1km, 18h30m
Eu disciplinaria. Era a decisão. Na caminhada mudou-se tudo: as
ideias que viessem soltas e com registro total. Sem nenhuma preocupação com
conexão de sentidos ou em busca de sentidos ou de entendimento de porquês.
Ideias se somando a ideias, multiplicando-se, sem nenhuma censura.
12h45
Jorge, meu filho, está triste. Não pode estudar. Não temos
dinheiro. Ele me espera, sentado no banco em frente à janela da casa. Chamo-o
até o carro. Ele se aproxima, mal cabe na poltrona.
- Pai, vocês acham que eu sou culpado pela separação de vocês.
Acham que eu
sou culpado.
Por que Jorge pensaria que, por ser culpado, então, estaria sendo
penalizado, estaria sendo prejudicado?
Culpado, responsável?
Por que essa visão?
Talvez pelos diálogos que trava, frases que ouve ( eu não tenho
dinheiro, é obrigação do seu pai) e dos jogos que percebe e não pode revelar
para não prejudicar ninguém.
Como retirá-lo desta situação e deste raciocínio? Ele não é
culpado. Ele é vítima? Ele se sente vítima? Prejudicado? Quantos desafios para
o meu filho?
16
A maratona
de um sobrevivente
- O que vier, agora, é lucro!
Esta frase, ele a repetiu tanto que, mais tarde, ao relembrar
aqueles momentos, depois que despertou no chão cinzento da cela, acreditou que
ela era a sua mantra, sua memória, sua oração, sua vida resgatada em meio a
corpos que vira saírem carregados, empapados de sangue, corpos no chão do
pátio, corpos no corredor, em que os torturados encapuzados tropeçavam.
- O que vier, agora, é lucro!
Como ele podia concordar com aquela frase? Lucro, um ganho a mais,
mais valia. O que vivera, então, tivera preço justo. Agora, ele tinha direito a
jogar tudo para o alto, sem temer a lei da gravidade. Nada era mais leve do que
o sobreviver, nada mais aéreo do que a vida conquistada, além da resistência.
Todo o corpo era um imenso hematoma, partes em carne viva, queimaduras entre as
pernas, dores dentro e fora do corpo.
Agora era agora e ele estava vivo, mas não precisava debochar da
sorte. Lucro? A sobrevivência como lucro. Que visão capitalista! Linguagem
imperdoável, mas era por onde, descobrira mais tarde, ganhara forças para
encarar aquela oportunidade de sobreviver. Talvez, não passasse da próxima
etapa, ele vencera, isto é, sobrevivera às sessões de tortura da PCA, da Biblioteca, do Túnel,
estas três ele vencera.
Todas elas, PCA, Biblioteca e Túnel eram locais e níveis de
tortura organizados no Aeroporto do Galeão pelo grupo de torturadores do
Ministério da Aeronáutica. A cada pouso de um jato no Aeroporto do Galeão era
como se a terra desabasse sobre sua cabeça. A sala de tortura do Túnel, a mais
violenta delas, se houvesse possibilidade
de uma ser mais violenta do que a outra, era debaixo da pista de pouso do
aeroporto internacional. Um avião atrás do outro. Uma loucura. Dali poucos
saiam vivos e os que saiam vivos traziam alguma marca. Agora, ele respirava mais uma vez, enchendo
os pulmões.
- O que vier, agora, é lucro!
Tempos depois, sentiu fome. Não sabia quanto tempo passara. Ali,
raramente serviam qualquer coisa, além de pancadas a qualquer hora, sem
qualquer razão, sem qualquer pretexto. Sentiu a chegada da fome como mais um
sinal de sobrevivência. Não preocupou-se em passar fome, tão certo de que
sobrevivera. Mexeu a perna e sentiu como se sua calça fosse uma madeira, dura.
Uma madeira que machucava, pois arranhava a carne viva. A calça dura, agora
madeira, era o sangue que secara e deixara sua calça como as roupas engomadas
que vestia nos dias de desfile cívico lá na sua distante Jampruca, no Vale do
Jequitinhonha.
- Se tudo o que vier é lucro, o mais a fazer é sustentar esta
hipótese de sobrevivência. Ele tinha certeza absoluta de que sobrevivera.
Lógico, não era um jogo de azar e nem o regime militar havia terminado.
Resistir não é prova de força e nem pode ser parâmetro de medida de força. Não
há explicação plausível para este fenômeno, pois muitos, muito mais fortes do
que ele, muito mais resistentes do que ele, não aguentaram. Quantos somos?
- O que vier, agora, é lucro!
Por que aquela frase batera em sua cabeça e não mais saíra?
- Era às vezes como uma provocação a mim mesmo e aos meus
agressores. Havia agora a vida, depois desta loucura, que deveria ser vivida,
sobrevivida.
- O que vier, agora, é lucro!
- O que vier, agora, é lucro!
O mundo mudou, muita coisa passou, muitas etapas foram
percorridas. Às vezes, ele se surpreendia ouvindo distante, longínqua, a frase
maluca.
- O que vier, agora, é lucro!
- Vinha como se chamasse a minha atenção, como uma voz tímida e
baixinha, a alertar-me de que talvez eu tivesse esquecido algo fundamental.
Outras vezes sobrevivera.
Aos 12 anos, em suas aventuras de menino, mergulhara para retirar
um homem afogado, e voltara abraçado em um porco inchado, desmanchando. Dias e
dias de febre. Fizera um pacto com a vida. Optara por sobreviver.
Ninguém jamais soube explicar sua recuperação, nem a mãe,
desesperada, e nem o médico, que já preparara os familiares para o desfecho
final. A febre desapareceu.
Que pacto misterioso foi este? Com quem negociou ou tramou a
sobrevivência?
Outra vez, depois de dois meses amarrado em uma cama no Palácio do
Catete, no Rio de Janeiro, fora retirado para a “execução”, colocado no chão de
um automóvel, com os pés dos policiais sobre o corpo, pés no pescoço e nos
rins.
Horas e horas rodando pelas ruas e avenidas molhadas do Rio de
Janeiro, numa noite de chuva fina, até chegar ao local da execução.
No pátio, parecia um pátio, encapuzado, o seu corpo já encharcado
de gasolina e álcool.
“Não vou morrer, sem lutar”.
A pouca chance que teve foi o bastante para despertar na cama do
hospital militar.
Ao abrir os olhos, viu o rosto amigo do general Figueiredo, amigo
da família. Os olhos do general estavam
úmidos e uma lágrima escapuliu.
Mais uma vez sobrevivera.
Agora, quando despertou na cela da PE da Barão de Mesquita, teve a
certeza de que o jogo continuaria e que ainda estava a seu favor.
- O que vier, agora, é lucro!
Ele tinha certeza. Mais do que isto, ele tinha uma linguagem com o
que ele não entendia, em que um diálogo inexplicável, fora do entendimento, se
passava e, por mais fraco que estivesse, a vida venceria sempre.
Era profundo. Nunca fora místico, não tinha raízes para isto e nem
formação adequada. Era preguiçoso. Nunca fora o melhor em nada, não tinha
motivações para qualquer tipo de disputa, nem tesão para ser vencedor de
competições e nem saco para comemorações.
- O que vier, agora, é lucro!
- O que vier, agora, é lucro!
- O que vier, agora, é lucro!
Nunca cedera em nada do que acreditava, mas acreditava em tão
poucas coisas, que sempre era visto como inadequado na convivência.
Incrédulo?
Nem tanto, porque nem ao não havia sim.
17
Final de julho
Quem sou eu?
Insisto
ainda nesta manhã de domingo
Kierkgaard
sabem quem ele é
Eu não sou filósofo
E eu? Eu não
sou escoteiro
Não sou
ginecologista
Não sou
militar, nem político
Não sou o
amante da argentina
Não sou um
homem
verdadeiramente
triste
Não sou
trapezista e nem aviador
Não sou
piloto de jato e nem de helicóptero.
Não sou
piloto.
Quais são,
então, os meus voos?
Não sou o
que serei amanhã
Amanhã, eu
não sou o que sou hoje
Crise total
de identidade
É o homem do
século
Perdidos em
si (são sempre muitos)
Encontrando-se
em espelhos
em tempos
virtuais
Esmagado
pelos heróis
de películas
e plásticos
horizontalizados
em imagens
que devora
os próprios heróis
que não se
reconhecem
em tanta
beleza e força
Eu não sou
saudoso
nem dos
tempos futuros
Eu não me
apaixono
por mais de
24 horas
Não sou um
poeta
Não sou um
bom poeta
cujos versos
são belos versos
Não sou um
bom poeta
não sei ser
romântico
Nem chego a
ser poeta social
íntegro
na revolta e
em suas consequências
Sou
desconfiado com a palavra
a da medida
e a do som
da beleza
dos poetas músicos
cheios de
muitas
profundidades
e melodias
belos
versos, belos poemas
belas
palavras, belas palavras
A palavra é
bela
é a beleza
das sereias
e eu não sou
Ulysses
Nem retorno
e nem resgatei
a honra da
minha cidade
Passo
olhando, olhos que já custo abrir,
os homens e
suas obras
- Há homens
que constroem igrejas,
túmulos,
prisões, colégios, museus,
palácios e
igrejas, casas e igrejas
Constroem
homens e mulheres
vícios e
domínios, vícios e sonhos
que serão
sempre sonhos, sonhos
e nada mais
Quem sou eu?
Nesta doce, silenciosa
e pura manhã
de domingo em julho?
Quem sou eu?
Eu sou a
minha liberdade
a
possibilidade concreta
de negar
recusar ser
o que não sou
Sou a
liberdade
O homem é
liberdade
Todos podem
negar
negar em si
o artista que não é
o protótipo
midializado
e até negar
a ser o contrário
Eu não sou
poeta
todo poeta é
um revolucionário
Eu não
consigo ser revolucionário
por mais de
algumas horas
Eu sei que
eu não sou um poeta,
um bom
poeta.
Talvez, eu
consiga ser
um homem.
Amanhã.
18
Quem é o meu pai?
(Na segunda-feira, ele foi internado e à noite submetido à segunda
cirurgia do abdome, diagnosticado abdome agudo, para combater uma infecção
interna na sutura da cirurgia intestinal anterior. Pai está entre a vida e a
morte. Seu quadro clínico é definido pelos médicos como grave, “ele corre
risco” e ele quer viver.)
Quem é o meu pai? Eu o conheço.
É uma criança. É um menino levado - estou dizendo para dar-lhe
entusiasmo, para sermos otimistas.
Cito, então, situações em que ele tenta enganar o enfermeiro,
controlando a velocidade do soro fisiológico, controlando a presença dos
enfermeiros, as ações do médico, querendo saber de tudo, o que vai ser feito, o
porquê, os resultados e fazendo questão de ser cortês e agradecido às ações de
todas as pessoas que se aproximam do seu leito.
A um enfermeiro novato que chegou, formal, se apresentando,
indicando tudo o que faria e registrando os seus “sinais vitais”, no final do
expediente, pai chamou-o e elogiou o seu trabalho, “foi o melhor enfermeiro que
eu tive até agora”. O rapaz desmanchou-se, surpreso. Não estava acreditando.
Parecia que naquele momento, efetivamente, ele recebia o seu diploma.
Quem é meu pai? Você o conhece?
Ele tem 87 anos. Ou 90? Eu tirei esta dúvida, diz Rita empolgada.
Nininha me disse que se pai tivesse 90 anos, ele seria irmão-gêmeo do Afonso.
Tem mesmo é 87 anos.
Minha irmã Rita de Cássia é a mão esquerda, mão direita, braços e
pernas de pai. Faz tudo, resolve tudo. Para Rita, ele é o homem que não aceita
ficar esclerosado, envelhecido mentalmente, que, surpreendido em atitudes
duras, admoestado, alertado, consegue mudar, reconhecer o erro ou de avaliação
de pessoa ou de condenação precipitada de fala e gesto.
Para ela, ele é um homem bom.
Quem é o meu pai?
19
Amanhã é aniversário de Jorge. Fará 19 anos. Hoje na pista de
Cooper da avenida dos Andradas, na margem esquerda do rio Arrudas, afluente do
rio das Velhas, na bacia do rio São Francisco, na manhã cedo e ainda vazia,
encontrei-me com Régis. Régis falou, falou muito e queria falar. Falaria mais
se tivesse ainda mais uma manhã, mais um dia e mais um século.
Estou separado, agora estou morando na casa de um amigo e em
diversas casas. Você se lembra do Washington, fotógrafo? Às vezes moro no
apartamento dele, durmo lá umas noites. Durmo também no apartamento de Teresa,
a mãe de Ana Luisa, minha filha de três anos e meio.
Na minha casa ninguém queria casar, somos cinco irmãos homens,
agora começaram a nascer as crianças.
A última vez que fui ao Norte, Amapá, foi em 95 quando levei Ana
Luisa a Macapá para o meu pai conhecer a sua neta. Levei mulher e filha. Meu
pai bateu direto, ele não aconselhava mulher nenhuma a casar com nenhum dos
filhos dele. Nenhum era certo. Todos só viviam de pau duro, se era para ter
orgasmos direto, então tudo bem, só para e por causa do orgasmo, para viver e
ter plano de vida não, não valia a pena e ele desaconselhava.
Separar foi duro. É duro. E separou da mulher e da filha.
Meu avô dizia que não se devia por muito óleo no pavio, era
encharcar o pavio e o fogo apagava. Não acenderia fácil. Nos dias seguintes à
última separação, na primeira semana, foi duro.
Sofri o diabo, não conseguia pensar outra coisa e só arranjava
razões para telefonar. Ela já me atendia com rispidez e com enfado. Segui o
ensinamento do meu avô e dosei o óleo. Não liguei mais. O que fazia, impus-me
uma rotina espartana, horário de acordar, caminhar, ler, trabalhar, comia a
mulher que me ligasse à tarde e comia desesperadamente. Vamos trepar de novo, eu não sou objeto, não é isso, você não imagina o
tamanho da minha dor.
Um tempo depois, ela aparece no jornal. "Precisamos
conversar". Não temos nada mais que falar.
- Poderíamos almoçar?
- Vamos, está na hora.
Depois do almoço ela me convida para passar na casa dela, que foi
nossa, à noite. Agora, ela é uma das que ficam após a triagem que fiz e em que
eliminei as mulheres da pesada e das drogas.
Hoje, estou vivendo a liberdade, morando ainda aqui e ali, nem
sempre por exemplo posso dormir no apartamento do Washington, ele está noivo e
eu já disse para ele não casar. Quando ele leva a noiva para o apartamento, eu
não posso ficar, é constrangedor. Agora, quando ele vai dormir no apartamento
dela, eu durmo no apartamento dele.
Assim, às vezes durmo no centro da cidade, no apartamento de
Washington, outras vezes no Sion, na rua Estados Unidos, outras vezes no
apartamento de Tereza aqui no São Lucas.
Cheguei à conclusão de que é verdade aquilo que dizem que quem
gosta de pica mesmo é viado e de que mulher gosta mesmo é de dinheiro. É por
aí, este raciocínio chega perto da verdade, daí porque existe e se chegou ao
casamento. O casamento é um papel que garante o dinheiro para a mulher, um
relacionamento em que ela tem um homem para sustentá-la, bancar a boa vida, daí
porque com o tempo, as mulheres casadas acabam procurando um homem com cacete
suficiente para administrar suas tesões.
Cansei de sair com noivas. Uma noiva uma semana antes do casamento
fez questão de dormir três noites comigo. Eu entendia, ela precisava garantir
sua vida, sua estabilidade, sua segurança.
Agora, uma menina do Tempo, que saiu comigo durante um ano, mandou
um convite de casamento e dentro um bilhete fixado com cola. Precisamos nos
encontrar antes da minha lua de mel. São
os cornos pré-datados.
O que mais me impressiona é a quantidade de mulher mal comida, mal
amada e mal relacionada. São mulheres com camisinhas, com data de vencimento,
vencidas. Elas têm as camisinhas na expectativa de que um homem determinado
apareça e as camisinhas acabam vencidas, são trepadas com prazo de validade
vencidas. Aí há um grave risco, todas estas camisinhas rompem e é uma merda.
Estou livre e preciso construir esta minha liberdade com trabalho
e organização. Parei de beber e estou emagrecendo, vou fazer 38 anos e tenho
que tomar alguns cuidados e fazer alguns exames tipo chekup. Cheguei a pesar 20
quilos a mais do que o meu peso normal, já perdi 10 quilos e vou emagrecer
mais, voltei a caminhar e a correr todos os dias e morando aqui e ali, já fiz
um mapa das pistas de Cooper das
imediações dos apartamentos onde durmo.
No centro, a pista do parque é uma pista popular que está
melhorando a frequência. A pista da avenida Bandeirantes é de pessoas com uma faixa de renda melhor, a
pista aqui da avenida dos Andradas é de um pessoal inferior economicamente ao
pessoal da Bandeirantes. É a nossa cidade, ela se divide, se exclui e se
contamina.
Depois de três separações,
aprendi a viver com poucas coisas, tenho quatro malas e uma mochila. As malas
guardam um pouco mais de coisas e as mochilas têm o essencial, é a escova de
dentes e duas mudas de roupas limpas.
20
Quem sou eu?
O que serei?
O que posso ser?
A identidade me foge e onde me perco?
O que o passado impõe e limita?
O que serei? É uma pergunta que pretende uma resposta acabada?
Serei Y, algo que me contenta e me faz feliz e livre.
O que serei? Indaga possibilidades, alternativas, pressupõe
alternativas. Serei o que posso ser ou poderei ser além do que posso ser?
(E o aquém? Serei aquém das minhas possibilidades de homem, de ser
humano?)
A um homem que só lhe restar a felicidade, responderia
positivamente?
- Só me
resta a felicidade.
Soa como uma condenação.
O que posso ser? É indagação que sugere a elaboração de uma lista
de possibilidade e de possibilidades relacionadas a oportunidades.
Na coluna de possibilidades, a felicidade. Na coluna de
oportunidades de se ser feliz, total. As oportunidades são amplas e percorrem
todas as coordenadas, todos os pontos e momentos de uma vida.
Ao longo da vida, o homem desperta com este tipo de
questionamento. Nem sempre dá importância a este fato. Há sempre a
possibilidade de mudanças e de aprimoramento. Nem sempre respondem a este
questionamento.
Aos oitenta anos ainda pode questionar-se, ainda lhe restará algumas
possibilidades, às vezes radicais. Há cada tempo, este questionar-se traduz-se
pelo, permanente, avolumar-se, pelo permanente crescer. Chega a tornar-se maior
do que a vida, dominar a vida, impedir a vida, paralisar a vida.
“Eu preciso responder e andar, fazer alguma coisa”.
O que o passado impõe? Está na feitura da lista das
possibilidades. Há uma “riqueza” construída, há um caminho feito e que indica
um caminho a fazer, há relações construídas e há uma malha tecida. Aí as
limitações e/ou as fabulosas aberturas liberadas pelo passado. Serão limitações
e elas, certamente, existem, quando consideradas impeditivas do crescimento
e/ou destruidoras de qualquer futuro...
- “Eu posso
ir embora. O senhor não pode. Eu tenho o mundo, o senhor tem aquela mesa pesada.
Para sair, o senhor teria que se desfazer dela ou arrastá-la sempre, eu estou
mais leve e o senhor é um homem pesado e preso naquele pé de abiu, que
alimentou suas fantasias de menino e sua infância. Eu estou leve e nenhuma
árvore de frutas me prende porque eu não tenho e nunca tive um pé de abiu. O
mundo todo é meu, o senhor tem apenas esta fazenda e por ela o senhor perde a
vida”
(O empregado
da fazenda do tio da Áurea, ao ser despedido)
... ou poderão metamorfosear-se, de limitações passarem a ser trampolins
para maiores e mais distantes saltos, fabulosas aberturas - é a aventura do
intelecto, do espírito em crescimento permanente, mesmo na mais profunda
obscuridade, mesmo nas limitações do apenas registrar, registrar, acumular,
acumular, é a grande aventura fabulosa do crescimento vertiginoso do espírito e
de sua história e um homem só.
O que um homem mais velho, tendo ultrapassado etapas de iniciação
e de produção, avaliaria, em função de permitir a outros reduzir etapas,
eliminar volteios e tempos perdidos?
- Digamos, eu me assusto com a quantidade de pessoas atrás de uma
profissão, de um documento profissional, de uma definição de atividade.
Outra
questão:
A declaração de amor. Por que declarar amor? A pessoa precisa
dizer o amor que sente?
Rita conta histórias de pessoas que tiveram a experiência de
sobreviver depois de um período entre
a vida e a morte. Um programa do “Globo
Repórter”: uma mulher no CTI percebe o que acontece em volta do seu leito, o
drama dos outros pacientes, cenas que apenas ela assistia, que mais tarde
checou, a relação dos pacientes próximos. O episódio do seu grande amor pela
“vó Gorda”. A família não havia avisado o que acontecera com a neta,
preocupados com a saúde da avó. Ela imagina-se e se vê indo até a avó, vê a avó
e ela a ouve chamá-la. Em seguida, quase instantaneamente, a avó liga
procurando saber notícias.
- Entra o que indago: o amor deve ser declarado?
Já imaginou, você que vive um grande amor por outra pessoa e que
nunca se revela, nunca se declara? Os amores de Dante e de outros grande
apaixonados, que sempre viveram apaixonados e que jamais declararam, em tempo
útil, o amor amado à pessoa amada.
21
Como um jogo
de xadrez
Esta estranha sensação em que não se consegue ficar mais em lugar
nenhum, em todos os lugares que chega, logo depois tem vontade de sair, e sai
por toda a cidade, sonhando em chegar na caverna, no seu esconderijo, onde,
ultimamente, se sentia melhor, sozinho. Mesmo ali não consegues ficar mais do
que algumas horas.
Sair para a casa paterna, na casa paterna é difícil quase
impossível ficar, já pensa em ir para a casa dos filhos, na casa dos filhos
pensa em ir para a casa da Pula, na casa da Pula é pular e sair, sair para a
rua, onde o que mais faz é caminhar, caminha, caminha e já queres ir para outro
lugar, deste outro lugar já pensas em ir para o Tribunal, no Tribunal em ir
para a editora, da editora em ir para a caverna, para o esconderijo, em lugar
nenhum sentes bem, não se sentes bem com o ar, com a terra, com o mundo, com
este mundo, então por que não fazes um outro mundo? O que o impede? O que o
impossibilita?
Fazer um outro mundo exige apenas criatividade - só.
Às vezes ser criativo é cansativo, e se os instrumentos da
criatividade se se limitarem às palavras, ah!, então, é como assegura-nos
Balzac, escrever é mais difícil do que conduzir exércitos na mais grandiosa das
batalhas de Napoleão.
Observo as pessoas que escrevem, os escritores de histórias
i
nfantis, os poetas, os romancistas que passam pela editora.
Chega um senhor, já velho, quase morto, cansado, trazendo um livro
pronto, o seu livro - apanho este porque ele não é um escritor profissional.
Hoje, temos escritores com 27 anos e 31 livros, alguns de grande
vendagem em todo o País. Este senhor que carrega sua história tem do livro uma
outra dimensão e se decidiu sair de casa, com aquele calhamaço debaixo do
braço, chega certo de que tem o livro, o seu livro, concluído.
O que é um livro para ele? É um bem precioso, suas palavras, com
toda a certeza, foram garimpadas, não estão entrando de qualquer jeito nas
frases e as frases foram escritas mil vezes, desde que ele muito jovem,
anotava, num pedaço de papel, em qualquer pedaço de papel, suas histórias, suas
reflexões.
Tudo o que está anotado no seu livro tem vida e é verdade, é a sua
verdade, mesmo aqueles casos estranhos, mas que foram contados a ele por
pessoas de credibilidade.