A última madrugada
que caminhamos juntos
Roberto Melo de Alcântara
| Os estudantes não deixaram a polícia levar o corpo de Edson Luiz |
Roberto de Almeida Melo
Quer saber mais sobre o Benedito, o jornalista. Nós
trabalhamos juntos um bom tempo na Rádio Tiradentes. A rádio foi criada por um
amigo do peito de Roberto Marinho. Eles falavam todos os dias: João Veras
e seu amigo Roberto Marinho.
Depois a rádio virou Rádio
Globo, depois virou a CBN. Rodrigo
Mineiro, na chefia da sucursal de O Globo, em Belo Horizonte, comandou a
transformação da rádio, mudanças de estilo de fazer rádio, elaboradas ao longo de meses em
Teresópolis.
Nada disso tem valor. Valor tem o Benedito.
Com ele e o Elson Martins (*) éramos os redatores das três
edições de O Seu Redator Chefe,
carro chefe do jornalismo do rádio do doutor
Roberto (segundo Veras)
Fazia o de meia noite e adiantava o material do jornal das
seis da manhã. A partir daí, saíamos, Benedito e eu, do Edifício Mariana, na
avenida Afonso Pena, madrugada, em horário que não tinha mais ônibus. Caminhávamos
do centro até o Prado, onde nossas casas ficavam a dois quarteirões uma da
outra, nas imediações da igreja Cura D'Ars.
Imagine este percurso, todas as madrugadas. A pé.
Conversávamos? Você conheceu Benedito. Conversávamos? Claro que não. Eu ouvia o
Benedito. E ele tinha muita coisa para falar. Como todo bom locutor, empostava
sua voz, gostava de se ouvir. Ouvia-se profissionalmente, para corrigir erros
de fala e de pronúncia. Aprimorava-se, como todo locutor que se preza em nosso
rádio.
Agora, a minha loucura: eu
gostava de ouvi-lo. Mais experiente, não por ser mais velho. Repito. Loquaz,
tinha prazer em argumentar e, percebi, ele também tinha prazer em ouvir a própria voz. Confirmava
esta impressão ouvindo-o falando alto nas ruas da madrugada. Uma voz forte, pausada, silabas pronunciadas,
na madrugada, têm mais força de convencimento do que deita num estúdio de
rádio.
Era, verdadeiramente, uma reflexão ambulante sobre 1. a vida
(mulheres, principalmente, quase que exclusivamente, "viver é amar"
sentenciava), 2. a profissão (crítico
sagaz, porque sabia elogiar os patrões)e 3. a política - na rua opositor
ferrenho, caustico e sarcástico.
Ontem, quando ouvi que "Benedito morreu há mais de 20
anos", retomei o meu Benedito como o conheci, alto, magro, sempre de
terno, naquelas caminhadas, tarado (parava o trabalho para namorar pelo
telefone).
Eu e o Elson escrevíamos, sozinhos, quase todos os jornais).
Namorando pelo telefone, Benedito esquecia de tudo em volta. Isto dentro de uma
sala não muito grande em que ouvíamos as falas dele para a moça, sei lá se
moça, do outro lado da linha. Coisa muito comum em rádio, ouvintes apaixonadas
pela voz masculina - você sabe da sedução de uma boa voz no rádio, você que
ouvia rádio e, pelo que vi ontem, seu rádio continua ligado.
A madrugada em que parei de caminhar com Benedito, foi
quando ele manteve, assustado, um olhar
de pavor.
Teve um assassinato. E teve um discurso de Lacerda. Estas
eram as notícias. O assassinato no Canecão, restaurante popular, no Rio. Do
Lacerda, Carlos Lacerda, governador, veio um dicurso contundente sobre o
assassinato.
E teve também, na sequência, a invasão da Rádio Tiradentes, pouco depois do
meio dia, pela polícia.
Naquele dia eu fui o redator do jornal O Seu Redator Chefe do meio dia. Na fila do elevador, indo embora, os
policiais passaram por mim.
Não sabia e nem imaginava onde eles iriam. Estavam indo para
a rádio.
No dia anterior, fora assassinado, no Rio de Janeiro, pela
polícia o estudante Edson Luís (**). O governador do Rio, Carlos Lacerda,
talentoso jornalista e melhor orador ainda, fizera um discurso condenando o
assassinato com várias frases "emocionantes e de efeito". Características do seu discurso.
Trabalhei uma edição especial do jornal centrada no
discurso, cujos trechos mais importantes entrelaçava com registros do episódio
no Calabouço com entrevistas, pronunciamentos de autoridades diversas.
Era uma senhora porrada na ditadura militar.
Para eles, os do lado de lá, o grave não era o crime
cometido, o assassinato de um estudante em um restaurante popular, grave era o
discurso de um ex-aliado dos militares.
Sexta-feira, 29 de março de 1968 foi meu último dia na Rádio
Tiradentes.
Bendito,com cara de pavor:
"Pô, cara, a
polícia me prendeu por sua causa. E eles sabiam que eu não escrevi e nem editei
o jornal".
João Veras passou mal. Muito mal mesmo. Não foi por causa da
polícia, de quem sempre se disse amigo.
Naquele dia, João Veras atendeu um único telefonema. Ligação de
Roberto Marinho... E passou muito mal.
Internado às pressas, ainda no hospital, revelou-se o teor do telefonema:
Roberto Marinho demitira
seu grande amigo,o piauiense João Veras.
(*) Com o Elson Martins e João Alberto Capiberibe fomos
primeiro para o Pará pela ALN, onde em Castanhal, avaliamos a ação de
resistência à ditadura, que comandada por posseiros.
(**) Edson
Luís de Lima Souto (Belém, 24 de
fevereiro de 1950 — Rio de Janeiro, 28 de março de 1968, quinta-feira) estudante secundarista brasileiro assassinado
por policiais militares, durante um confronto no restaurante Calabouço, centro do Rio de
Janeiro. Seu assassinato marcou o início de um ano turbulento de intensas
mobilizações contra o regime militar que endureceu até
decretar o chamado AI-5. Era aluno do
Instituto Cooperativo de Ensino, no qual funcionava o restaurante Calabouço.