As cinzas da minha tia
Rita Prates
Encontrei com Anne em um passeio de barco pelo Caribe. Ela
estava sentada na proa e ao me aproximar começamos a conversar. Na maior tranquilidade, como se estivesse em
uma sessão de terapia, ela começou a me contar sobre a sua vida.
No auge da sua juventude conturbada de variantes adrenalinas,
revelou que arranjou emprego em um navio com destino a Nova Zelândia. Lá se
entregou a aventuras e viveu momentos de grandes emoções. Seus olhos brilhavam
quando falava dessa época de descobertas e de ter conseguido se afastar das
asas protetoras da mãe.
Quando terminou a faculdade sentia um vazio que lhe oprimia o
coração. Decidiu dar outra reviravolta em sua vida. Colocou mais adrenalina.
Alistou-se no exército americano e foi trabalhar em uma base
naval. Lá conheceu um oficial. Em poucos meses estavam casados.
Depois de um atentado terrorista que matou centenas de
pessoas, ela foi enviada para o fronte junto com o marido. Ele foi morto e ela
atingida por balas e granadas que causaram sequelas e uma prótese na perna.
Após as tormentas que sacudiram a sua vida e deixaram marcas físicas e
emocionais, resolveu dar um tempo e não mais se aventurar.
Paramos a conversa e fomos mergulhar. Quando voltamos ao
barco Anne estava mais serena, leve e disposta a mudar o rumo da conversa.
- Vou te contar um caso super louco que aconteceu comigo há
um mês, falou ofegante. Veio a pandemia e junto com ela o falecimento trágico
da minha tia, atropelada por um caminhão. Como a família não podia ir ao
enterro, mandaram cremá-la e guardar as cinzas para quando pudessem fazer a
cerimônia de despedida.
- Um ano e meio depois reunimos na casa da minha avó de noventa
e três anos para darmos o último adeus a tia. Enterrariam as cinzas no quintal
da casa, segundo o aviso junto ao santinho com a foto da falecida. Celebraram a
missa. Vieram as falas de despedida. Na hora de enterrar as cinzas, a avó mudou
de planos.
- Levamos o maior susto quando ela abriu a urna com as cinzas
dentro, pegou em uma caixa vários saquinhos de plástico, e começou a encher com
uma pá cada um dos saquinhos com as cinzas da minha tia.
Disse Anne segurando para não rir.
- Vovó disse que era para guardarmos como recordação.
Sabíamos que não era uma boa ideia carregar a tia conosco, e também porque ela
treme muito e aquilo não ia dar certo.
- Não teve outra, disse Anne com o olhar travesso.
- Metade das cinzas entraram nos saquinhos e a outra metade
voou pela casa e estacionou em nossos cabelos, roupas e móveis. Pedimos para
ajudá-la. Ela ignorou e continuou a espalhar a nossa tia pelos ares. A minha
mãe apertava o meu braço para conter o riso, e eu tive que evitar os olhares
cruzados para não cairmos em gargalhada. Quando acabou todos ficaram de cabeça
abaixada e sacudiam despistados os restos mortais da tia grudados em seus
corpos.
Não me contive e ri junto com ela.
- Tem mais, continuou.
- Sai da cerimônia com o saquinho de cinzas na bolsa e fui me
encontrar com um amigo. No meio do caminho resolvemos ir a um bar gay para
assistirmos um show transformista.
- Ao abrir a bolsa para pagar a cerveja vejo a minha tia
dentro do saquinho e não me contive, rachei o bico ao contar para o meu amigo
que a minha tia era beata, pudica e agora estava comigo em um bar que ela
jamais frequentaria. Ele pegou o saquinho e lhe deu um beijo de boas-vindas e a
colocou sobre a mesa.
- Durante o show imaginava os olhares de espanto da tia em um
ambiente super alegre, colorido e extravagante. Quando a música rolou no salão
esquecemos a tia em cima da mesa e fomos dançar. Ao voltarmos cadê o saquinho
com a tia dentro. Desesperei ao pensar que ela poderia estar espalhada pelo
salão e pisada por saltos altos, misturada a paetês e grudada em suores e
cervejas.
Um amigo falou que o garçom havia levado a tia para a
cozinha. Entrei em pânico, ela viraria tempero em poucos minutos. Alcançamos o
garçom que nos mostrou o saquinho com a tia dentro de um pote.
Queriam saber que tipo de droga era aquela, já que
experimentaram o pó e ele não tinha
sabor e não deu barato nenhum. Quando falei que era as cinzas da minha tia,
dois garçons correram para lavar a boca e outro jogou fora um prato com
petiscos com a minha tia espalhada por cima. Pegamos o saquinho e saímos de
fininho em meio a uma zoeira infernal provocada pelas cinzas da tia.
- Ainda não acabou. Disse-me ela faceira.
- No dia seguinte peguei o avião para casa, e não é que
esqueci novamente a minha tia em cinzas dentro da bolsa. Tremi de medo ao
passar pela fiscalização da bagagem de mão, podiam achar que eu estava
carregando algum tipo de droga.
Nesse momento rezei para a tia pedindo para que ela se
tornasse invisível no meio das minhas tralhas.
- Ela me ouviu, tenho certeza, pois não a notaram quando a
bolsa passou pelo raio x. Como eu tremia o fiscal abriu a maldita, olhou tudo
que tinha dentro, mas não viu a minha tia no saquinho fingindo-se de morta.
As pessoas ao nosso redor observavam nós duas contorcendo em
risos.
- Para finalizar, falou Anne quase sem fôlego, naquele
instante prometi a minha tia em cinzas que a transformaria em um colar. Quero
levá-la para passear, para se divertir e conhecer os meus excêntricos amigos. A
coitada viveu a vida toda no interior e o único passeio que fazia era ir à
missa. Agarrada ao meu pescoço a tia vai se surpreender com o admirável mundo
novo e, se ficar muito chocada, corro o risco dela me enforcar pela minha
ousadia.