sexta-feira, 22 de outubro de 2021

CINZA NÃO É PÓ

 






 

As cinzas da minha tia

 

Rita Prates 

 

Encontrei com Anne em um passeio de barco pelo Caribe. Ela estava sentada na proa e ao me aproximar começamos a conversar.  Na maior tranquilidade, como se estivesse em uma sessão de terapia, ela começou a me contar sobre a sua vida.

 

No auge da sua juventude conturbada de variantes adrenalinas, revelou que arranjou emprego em um navio com destino a Nova Zelândia. Lá se entregou a aventuras e viveu momentos de grandes emoções. Seus olhos brilhavam quando falava dessa época de descobertas e de ter conseguido se afastar das asas protetoras da mãe.

 

Quando terminou a faculdade sentia um vazio que lhe oprimia o coração. Decidiu dar outra reviravolta em sua vida. Colocou mais adrenalina.

 

Alistou-se no exército americano e foi trabalhar em uma base naval. Lá conheceu um oficial. Em poucos meses estavam casados.

 

Depois de um atentado terrorista que matou centenas de pessoas, ela foi enviada para o fronte junto com o marido. Ele foi morto e ela atingida por balas e granadas que causaram sequelas e uma prótese na perna. Após as tormentas que sacudiram a sua vida e deixaram marcas físicas e emocionais, resolveu dar um tempo e não mais se aventurar.

 

Paramos a conversa e fomos mergulhar. Quando voltamos ao barco Anne estava mais serena, leve e disposta a mudar o rumo da conversa.

 

- Vou te contar um caso super louco que aconteceu comigo há um mês, falou ofegante. Veio a pandemia e junto com ela o falecimento trágico da minha tia, atropelada por um caminhão. Como a família não podia ir ao enterro, mandaram cremá-la e guardar as cinzas para quando pudessem fazer a cerimônia de despedida.

 

- Um ano e meio depois reunimos na casa da minha avó de noventa e três anos para darmos o último adeus a tia. Enterrariam as cinzas no quintal da casa, segundo o aviso junto ao santinho com a foto da falecida. Celebraram a missa. Vieram as falas de despedida. Na hora de enterrar as cinzas, a avó mudou de planos.

 

- Levamos o maior susto quando ela abriu a urna com as cinzas dentro, pegou em uma caixa vários saquinhos de plástico, e começou a encher com uma pá cada um dos saquinhos com as cinzas da minha tia.

 

Disse Anne segurando para não rir.

 

- Vovó disse que era para guardarmos como recordação. Sabíamos que não era uma boa ideia carregar a tia conosco, e também porque ela treme muito e aquilo não ia dar certo.

 

- Não teve outra, disse Anne com o olhar travesso.

 

- Metade das cinzas entraram nos saquinhos e a outra metade voou pela casa e estacionou em nossos cabelos, roupas e móveis. Pedimos para ajudá-la. Ela ignorou e continuou a espalhar a nossa tia pelos ares. A minha mãe apertava o meu braço para conter o riso, e eu tive que evitar os olhares cruzados para não cairmos em gargalhada. Quando acabou todos ficaram de cabeça abaixada e sacudiam despistados os restos mortais da tia grudados em seus corpos.

 

Não me contive e ri junto com ela.

 

- Tem mais, continuou.

 

- Sai da cerimônia com o saquinho de cinzas na bolsa e fui me encontrar com um amigo. No meio do caminho resolvemos ir a um bar gay para assistirmos um show transformista.

 

- Ao abrir a bolsa para pagar a cerveja vejo a minha tia dentro do saquinho e não me contive, rachei o bico ao contar para o meu amigo que a minha tia era beata, pudica e agora estava comigo em um bar que ela jamais frequentaria. Ele pegou o saquinho e lhe deu um beijo de boas-vindas e a colocou sobre a mesa.

 

- Durante o show imaginava os olhares de espanto da tia em um ambiente super alegre, colorido e extravagante. Quando a música rolou no salão esquecemos a tia em cima da mesa e fomos dançar. Ao voltarmos cadê o saquinho com a tia dentro. Desesperei ao pensar que ela poderia estar espalhada pelo salão e pisada por saltos altos, misturada a paetês e grudada em suores e cervejas.

 

Um amigo falou que o garçom havia levado a tia para a cozinha. Entrei em pânico, ela viraria tempero em poucos minutos. Alcançamos o garçom que nos mostrou o saquinho com a tia dentro de um pote.

 

Queriam saber que tipo de droga era aquela, já que experimentaram o pó  e ele não tinha sabor e não deu barato nenhum. Quando falei que era as cinzas da minha tia, dois garçons correram para lavar a boca e outro jogou fora um prato com petiscos com a minha tia espalhada por cima. Pegamos o saquinho e saímos de fininho em meio a uma zoeira infernal provocada pelas cinzas da tia. 

 

- Ainda não acabou. Disse-me ela faceira.

 

- No dia seguinte peguei o avião para casa, e não é que esqueci novamente a minha tia em cinzas dentro da bolsa. Tremi de medo ao passar pela fiscalização da bagagem de mão, podiam achar que eu estava carregando algum tipo de droga.

 

Nesse momento rezei para a tia pedindo para que ela se tornasse invisível no meio das minhas tralhas.

 

- Ela me ouviu, tenho certeza, pois não a notaram quando a bolsa passou pelo raio x. Como eu tremia o fiscal abriu a maldita, olhou tudo que tinha dentro, mas não viu a minha tia no saquinho fingindo-se de morta.

 

As pessoas ao nosso redor observavam nós duas contorcendo em risos.

 

- Para finalizar, falou Anne quase sem fôlego, naquele instante prometi a minha tia em cinzas que a transformaria em um colar. Quero levá-la para passear, para se divertir e conhecer os meus excêntricos amigos. A coitada viveu a vida toda no interior e o único passeio que fazia era ir à missa. Agarrada ao meu pescoço a tia vai se surpreender com o admirável mundo novo e, se ficar muito chocada, corro o risco dela me enforcar pela minha ousadia.