quinta-feira, 28 de outubro de 2021

O CARONA ERA UM ASSASSINO?

   




45 




Rufino Fialho Filho


Era noite. Noite sem lua. Noite de verão. Sem estrelas. Céu escuro. Fardado, com uma sacola, onde carrega a roupa civil, Agnaldo de Almeida Salomão, cabo do Exército, pegou uma carona em Araguari, onde servia no 2º Batalhão Ferroviário - Batalhão Mauá para Monte Carmelo.

O caminhão o deixaria na encruzilhada do diabo. Outra carona e chegaria ao seu destino. Não seria problema. Com a farda e com muitos conhecidos na região. "Tenho muita gente amiga", assim acreditava despreocupar sua mãe ao vê-lo sair atrás de carona.

Essa noite, ainda encontraria com sua mulher, uma puta, sócia da Boate Estrela do Sul. A outra proprietária era muito amiga do soldado Nazaré, da PM. Todos gostavam do cabo Salomão. Um rapaz sério. Nunca arranjou confusão. Não procurava briga. "Era respeitador" e confirmavam isto observando como ele se referia à bela Lindalva, a sua mulher. No Exército trabalha no Batalhão Mauá.  A última obra era a preparação de um caminho para a estrada de ferro. 

A briga, sem final violento com um sargento, não foi registrada em seu boletim. Era já uma indicação de que ele tinha o estopim muito curto. Ele bebia uísque e o sargento, cachaça. A discussão que girou em torno da bebida esquentou porque o sargento falava com rispidez. Era grosseiro, posicionava-se sobre a hierarquia. 

Bêbados, o cabo desafiou o sargento para um duelo. "Como nos filmes de faroeste", ironizou. O sargento recusou. Agnaldo colocou duas facas na mesa. 

O que acabou com a briga foi o silêncio e a rápida intervenção dos amigos.

Ele olhava a estrada e não via a estrada. Com os olhos nas montanhas que corriam ao lado da cabine do caminhão, ele via sua mãe. Seus olhos encheram-se de lágrimas e ele se conteve. Vergonha de chorar ao lado de um motorista que falava sem parar (e ele só via e ouvia sua mãe). Não entendia o porquê disto. Acontecia todas as vezes que via, na sua frente, como se estivesse presente, a figura magra e o rosto pálido da sua mãe. Minha mãezinha. 

Agnaldo nunca vivera com a mãe, educado pelos avós maternos, era filho natural. Seus pais eram os avós a quem chamava de pai e mãe.

A partir do serviço militar, aproximou-se mais da mãe com que esteve em raras férias. 

Assim, soube do primeiro casamento dela, do fracasso. Soube dos amores violentos da mãe e do homem que se tornou o seu pai. Conheceu o terceiro homem com quem ela vivia agora e já há mais de 18 anos.

O caminhão parou. O motorista continuou falando. Agora ouviu que ele contava o caso de uma mulher.

As luzes cruzam a estrada e iluminam o rosto do motorista. Volta e meia, ele olha para o cabo e sorri.

Quando percebia que o cabo não estava atento, pensava em parar de falar. Pensou. Continuou a falar e a ouvir sua voz ressoando dentro da cabine.

Parou no acostamento e de fora do caminhão, disse que o defeito não tomaria o tempo deles, "você chegará a tempo de encontrar sua mulher, amigo cabo".

- Ela acreditou. Até hoje, pensa que voltaria...

Da escuridão, ouviu o motorista

- Não quer mijar?

- Não.

- Puta que pariu, cabo, que escuridão.

- É.

O motorista subiu no caminhão. Assustou-se e perdeu o controle de seus movimentos, pois chegara a pensar em correr ao ver Agnaldo com a 45 apontada para ele.

- O que é isso, moço?

Agnaldo viu no rosto apavorado, as mudanças de cores. De vermelhão, o motorista amarelou.

- Não é nada. Nada. Nada, examinava a arma. Na escuridão, tudo pode acontecer. Um assalto...

- Porra, cabo, vira isso para o inferno.

Fora um impulso para matar. Desta vez, ele controlou como controlara na briga com o sargento. Já o intrigava este impulso homicida. Como de matar fosse fácil. Necessário. Necessário? "Eu precisos matar alguém... só porque tenho uma arma?" Algo o impelia, o comandava. Tremia. Aquela vontade de matar o comandava. Era o seu superior a dar ordem. Mate. Chegou a hora de matar. Inútil. Jamais se submeteria a um instinto assassino. Sempre dominava e tinha o controle. Exercitaria. Controle da mente e dos músculos. Se a mão tirava o revólver do coldre, tinha de matar.


Como ouvira uma vez na aula de catecismo de que houve um bispo, santo da igreja, que dizia que se um crente tirava a espada da bainha, tinha que voltar com sangue de um infiel.


Não se lembrava mais de quantas vezes isto aconteceu. Conseguia controlar como controlou agora e se sentiu aliviado ao despedir do motorista.

 Caminhou na estrada e logo um carro parou. Um fusca. Seus olhos brilharam. Chegaria a tempo para a sua mulher Lindalva, a Linda Dalva.

Quando viu o motorista do Fusca, lembrou do seu pai, professor primário. Seu primeiro e constante professor. Todo o amor que tivera por ele, passou num átimo, sem que ele percebesse, imediatamente, para a mãe, de quem sempre ouvira insinuações, nem sempre claras, de que era uma puta.

Por que a mudança. Gostava do pai ainda. Sabia que era um homem bom. Agora, era para a  mãe que todo o seu amor, atenção e carinho se voltavam. Um amor que anulava tudo e todo o antes.

Ela fora uma mulher muito bonita, "todo mundo gostava dela". Ouvia. Ela foi bela. Ouvia. Ela ainda está nova. Não envelhece. Quanto ela teria sofrido com os seus amores amados e desamados?

Era no pai e na mãe que pensava dentro do Fusca.

- Vamos chegar em menos de meia hora.

- A estrada está boa.

Nem 15 minutos depois, fiz o primeiro disparo contra a nuca do motorista. O outro tiro foi na cabeça do homem que estava sentado ao lado do chofer. Assim, em menos de um minuto, matei o prefeito e o presidente da Câmara de Vereadores de uma cidade vizinha de Patos de Minas. 

Matei.

Disse algo que parecia uma eternidade. Uma única palavra"Matei" e a eternidade.

A primeira decisão que tomei foi procurar meu amigo, o soldado da PM, contar o que fiz, ele não acreditaria. Tentaria explicar que não consegui controlar o assassino que me dominava em mim mesmo e que era eu mesmo. A difícil luta que travara até aquele instante. Enfim, uma luta que eu perdera. A primeira? Tirei os dois cadáveres. Coloquei-os na beira da estrada, arrumei com a terra duas almofadas sobre a cabeça deles (para que isso?). Cruzei as mãos como se faz com os defuntos. Cobri seus corpos com os paletós que encontrara no banco traseiro ao meu lado. Peguei a estrada e, totalmente, sem concentração para dirigir, tombei o carro e capotei, em seguida.  

Desisti de procurar o PM amigo. A única opção agora era fugir.Sai da estrada. Entrei no mato que conhecia muito bem. Área das minhas caçadas, todo um terreno na palma da minha mão. Iria direto para o quartel. 

Agnaldo perdeu-se na mata que conhecia muito bem. Andou até o amanhecer. Chegou até próximo à estrada de Patrocínio. Como não identificou nem o caminho que conhecia de caçadas, percebeu que não conseguiria pensar em nada de positivo. Voltou em direção a Monte Carmelo. Foi à Chapada e seu pai perguntou-lhe se soube do crime. Agnaldo trocara de roupa. Agora a farda estava dentro da sacola.

- Mataram dois homens, gente importante.

Ouvia a voz do pai que repedia a frase a todas as pessoas que chegavam em sua casa.

Zanzou pela casa, parou na copa. Chamou o pai, o tio e o avô. Detalhou como cometera aquele crime em que matara dois homens.

Agora a frase que era repetida era dita por Agnaldo.

- Eu sou o criminoso, eu sou um assassino. Matei dois homens.

O avô encostara na prateleira como Agnaldo o via sempre seguro no tronco da goiabeira.

- Meu deus, tire-me a vida agora.

Ouviu um dos homens dizer.

Percebeu que seu pai e o tio não entendiam nada. Não acreditavam.

A razão e a atitude prática assumiram o comando da copa. 

- O que fariam?

- O que faria o filho? 

- Fugiria? 

Recusou o dinheiro que ajuntaram. 

Não havia suspeitos. Já em segurança, Agnaldo decidiu apresentar-se no quartel. Confessaria os dois crimes. Jamais revelaria a razão. Ninguém acreditaria nele. 

Entregou a farda e o revólver, uma bela 45.

Sua mãe apareceu ainda no primeiro dia de sua prisão. Soube que ela esteve lá. Só puderam encontrar dias depois. 

Para ele confirmou o grande amor, o grande afeto. 

Agnaldo diz que preso, percebeu o quanto cresceu o amor entre os dois.

...

Agnaldo lembra dos instantes de desespero quando andava pelo cerrado, antes de chegar na casa do seu pai. 

"Procurava água para limpar o sangue no braço. Andou com as pernas já sem forças. Queria água, queria limpar o sangue. Desesperado, mijou no lenço e limpou o braço. Foi aí que notei que jamais conseguiria tirar aquele sangue do meu corpo. Por isso, quando cheguei lá na Chapada, já estava decidido a me entregar. Não mataria mais ninguém".