quarta-feira, 10 de agosto de 2022

ATÉ A VERSÃO DEFINITIVA

 





  

 

Depois da chuva

 

Rufino Fialho Filho

 

 

Tempo úmido. Em Linhares, o espaço para caminhar e conversar era o amplo refeitório. Gustavo conta para Álvaro a história da mulher de Z. 

Esta história modificou um pouco um ano depois quando, perna engessada, Gustavo  repetia o mesmo relato para o Gordo.

"Ia lá uma vez ou outra para distrair, variar, não ficar na mesma. A variação não tinha grande efeito, sabe? Não sou exigente. Basta a mulher ser bela ou me agradar. Não sei se todo mundo é assim.

Sem nenhuma disposição ao ritual da cantada, da conversa com a moça, de passear, cinema, beber uma cerveja, lanchar, boate, conhecer a família, os amigos dela, ser agradável, evitar imprudências ou algo que coloque tudo a perder.

Segue o ritual. Na sequência, o convite para um programa, na expectativa de um lugar sossegado.

Muitas viciam, antes de um programa, há um cardápio pré-sexo, um jantar. Cara, elas andam famintas.

Para dispensar tudo isto, o que sempre fiz, o melhor lance é o salto. Não correr o risco de enfrentar um caso de psicatenia, ideias fixas, obsessões, dúvidas, tudo isto aparece muito rápido ainda nas primeiras semanas.

No salto, cai de onde nunca mais sai. Cai nos rendezvous da capital. Anh? Casa de mulheres, casas da alegria, esta palavra francesa traduzida é encontro, casa de encontro, onde encontra as profissionais, mulheres carinhosas, felizes por profissão.

Se elas gozam? Se gozam ou fingem dá tudo na mesma. Não importa.

Importa é que a alegria delas, a felicidade faz você sentir-se mais do que é, até mesmo quando dizem que nunca viram um cacete igual.

O cara sai do quarto se sentindo mais homem.

As escapadas para estes encontros não eram tão frequentes. Ia quando dava na telha, quando a noiva tornava-se insuportável.

Até que conheci Suzaninha. Se era seu nome verdadeiro? Não, não sei. Era como ela atendia. Suzana? Não. Suzaninha. Não fiquei com ela. Batíamos um papo rasteiro. Contando agora, era impressionante os olhares dela. Conversava com os olhos. Silêncios são sempre significativos. Constrangedores, ás vezes. Insistentes com a firmeza dos olhares. O cara manja logo. Eu também, obstinadamente a perseguia com os olhos quando ela distraia e não me via. Não sei, exatamente, o porquê. Ela se dizia anarquista.

Anarquista? Quis saber. Entendia o anarquismo como total liberdade. No caso, o direito de bagunçar "isto que os livros e as estatísticas chamam de família".

Outro dia, encontrei-a na rua. Calça comprida branca, blusa azul,casaco de frio marrom. Ia para a escola.

Outra vez, saímos juntos, duas horas da tarde. Procurávamos um barzinho, ventilado. Ao entrar na loja de tecidos para comprar o presente de aniversário da sua mãe, comprei uma toalha de mesa. Era a minha contribuição em nome de todos os amigos da filha.

Assim, embora sempre juntos, nunca íamos para o quarto no rendezvous. Ao me aproximar, mudava de assunto , envergonhado, sim. Imediatamente, sob o olhar alegre de Suzaninha, chamava uma de suas amigas mais íntimas, se é que se pode falar de intimidade em um puteiro.

Compreende, cara, uma coisa dessas?

Durou pouco. Haveria de vencer a timidez e a falsa vergonha. Até que, um dia, ela não saiu do quarto, passara mal. Dona Selma  não sabia explicar o que acontecera, o médico dissera que fora um simples mal estar. Dona Selma, com um copo de água, estava inquieta. Eram 30 a 50 moças, todos os dias, e apenas 15 quartos.

"Leve-a para a casa dela ou para sua casa ou para um hotel."

No apartamento na Augusto de Lima, mais uma vez conversamos muito. Ela irá dizer para a eternidade que gostávamos desses encontros  e dos nossos papos. Intermináveis.

Anoitecia, ela devia voltar para a sua casa. Apaguei as luzes. Ela parou em frente à porta.

Foi a nossa primeira noite. A partir daí, tudo deu certo.

Passeávamos.

Naqueles seis meses, em Vitória, éramos um casal, nos primeiros dias de vida conjugal.Terminava meu contrato com a agência de publicidade Estácio&Moraes.

Ela estava barriguda, linda. Fomos um casal feliz. Outro objetivo da viagem era que o parto fosse longe de BH. Era uma mulher maravilhosa. Acredito e eu era um grande companheiro, aquele que cuida de afazeres indispensáveis, lavava as louças e fazia a faxina da casa com o mesmo cuidado ao dar banho nela. Era nossa oportunidade. Estávamos decididos a não deixá-la passar. Fora um tempo programado.

E que acabaria. Como acabou.

Voltamos para BH e ela voltou à sua velha vida antiga na casa de encontros da rua dos Pampas, no Prado. Nossos trabalhos tomavam nosso tempo, ocasionalmente dormíamos juntos no sábado ou no domingo.

Com Olga, a minha noiva, tudo tranquilo até uma briga por um motivo fútil. Trabalhava na Rádio Minas, uma das emissoras do empresário Ramos de Carvalho (*), radialista que chegara de Londres, onde trabalhou por décadas na BBC, convocado pelo governador Juscelino Kubitschek para participar de sua campanha para a presidência da República em 1955, em que foi eleito e empossado no ano seguinte.

Chegava na rádio às 6h para terminar a redação do noticiário que entraria no ar às 7h com Tarcísio Barbosa e Osvaldo Montes.

A briga foi na noite anterior. Sempre tirávamos duas à noite e uma caprichada na manhã seguinte.

Ela passara uma pasta no cabelo cujo cheiro impregnava até as cortinas e os móveis. Insuportável e enjoativo. Sugeri que lavasse o cabelo, aí a casa caiu, virou uma fera. Não discutimos. Eu só ouvia. Mais de meia hora de uma louca argumentação em que entrava desde a explicação da química daquele produto.

Decidi aguentar o cheiro. Ela merecia. Andava nervosa, era o ciúme que ganhava corpo e expressão. De repente, ela explodiu, disse que era um homem comum, que me apavorava com a ideia de compromissos, que negava a cumplicidade com uma mulher. Deveria me esforçar para ser uma pessoa diferente. Uma maçada. Calado fiquei diante de duas horas de palavras pesadas. Nem por isso deixamos de lado as duas trepadas antes de dormir.  Virei para o pé da cama  bem distante de seus cabelos.

Cansada e satisfeita, dormiu abraçada aos meus pés. Eu não conseguia dormir nem na poltrona da sala com a porta do quarto fechada ao tentar, inutilmente, isolar aquele cheiro. Como dormir?

Cinco horas já me preparava para sair, ela acordou.

Rodou a baiana, começou resmungando e rápido passou aos gritos. Confusão. Comédia. Agressão física.

Chamada pelos vizinhos, a polícia entrou no apartamento. Marcelo Durães, escritor, vizinho do apartamento da frente, ouvia atentamente. Ele anotaria aquelas cenas e os diálogos bizarros com acusações ao companheiro, ao noivo,depois aos vizinhos e à polícia.

"Vocês não tem que entrar nisso".

Convicta de que podia ditar regras e normas de conduta, ela ganhava tempo para atrasar minha saída para o trabalho. Tinha tempo. Eram pouco mais das 5h, tinha duas horas.

Gracinha, nossa amiga, moradora do 6º andar, apareceu e me deu uma cobertura cerrada. Cheguei na rádio a tempo de entregar o jornal das 7h.

 

(*) A outra era a Rádio Pampulha