Depois da chuva
Rufino Fialho Filho
Tempo úmido.
Em Linhares, o espaço para caminhar e conversar era o amplo refeitório. Gustavo
conta para Álvaro a história da mulher de Z.
Esta
história modificou um pouco um ano depois quando, perna engessada, Gustavo repetia o mesmo relato para o Gordo.
"Ia lá
uma vez ou outra para distrair, variar, não ficar na mesma. A variação não
tinha grande efeito, sabe? Não sou exigente. Basta a mulher ser bela ou me
agradar. Não sei se todo mundo é assim.
Sem nenhuma
disposição ao ritual da cantada, da conversa com a moça, de passear, cinema,
beber uma cerveja, lanchar, boate, conhecer a família, os amigos dela, ser
agradável, evitar imprudências ou algo que coloque tudo a perder.
Segue o
ritual. Na sequência, o convite para um programa, na expectativa de um lugar
sossegado.
Muitas
viciam, antes de um programa, há um cardápio pré-sexo, um jantar. Cara, elas
andam famintas.
Para
dispensar tudo isto, o que sempre fiz, o melhor lance é o salto. Não correr o
risco de enfrentar um caso de psicatenia, ideias fixas, obsessões, dúvidas,
tudo isto aparece muito rápido ainda nas primeiras semanas.
No salto,
cai de onde nunca mais sai. Cai nos rendezvous da capital. Anh? Casa de
mulheres, casas da alegria, esta palavra francesa traduzida é encontro, casa de
encontro, onde encontra as profissionais, mulheres carinhosas, felizes por
profissão.
Se elas
gozam? Se gozam ou fingem dá tudo na mesma. Não importa.
Importa é
que a alegria delas, a felicidade faz você sentir-se mais do que é, até mesmo
quando dizem que nunca viram um cacete igual.
O cara sai
do quarto se sentindo mais homem.
As escapadas
para estes encontros não eram tão frequentes. Ia quando dava na telha, quando a
noiva tornava-se insuportável.
Até que
conheci Suzaninha. Se era seu nome verdadeiro? Não, não sei. Era como ela
atendia. Suzana? Não. Suzaninha. Não fiquei com ela. Batíamos um papo rasteiro.
Contando agora, era impressionante os olhares dela. Conversava com os olhos. Silêncios
são sempre significativos. Constrangedores, ás vezes. Insistentes com a firmeza
dos olhares. O cara manja logo. Eu também, obstinadamente a perseguia com os
olhos quando ela distraia e não me via. Não sei, exatamente, o porquê. Ela se
dizia anarquista.
Anarquista?
Quis saber. Entendia o anarquismo como total liberdade. No caso, o direito de
bagunçar "isto que os livros e as estatísticas chamam de família".
Outro dia,
encontrei-a na rua. Calça comprida branca, blusa azul,casaco de frio marrom. Ia
para a escola.
Outra vez,
saímos juntos, duas horas da tarde. Procurávamos um barzinho, ventilado. Ao
entrar na loja de tecidos para comprar o presente de aniversário da sua mãe,
comprei uma toalha de mesa. Era a minha contribuição em nome de todos os amigos
da filha.
Assim,
embora sempre juntos, nunca íamos para o quarto no rendezvous. Ao me aproximar,
mudava de assunto , envergonhado, sim. Imediatamente, sob o olhar alegre de
Suzaninha, chamava uma de suas amigas mais íntimas, se é que se pode falar de
intimidade em um puteiro.
Compreende,
cara, uma coisa dessas?
Durou pouco.
Haveria de vencer a timidez e a falsa vergonha. Até que, um dia, ela não saiu
do quarto, passara mal. Dona Selma não
sabia explicar o que acontecera, o médico dissera que fora um simples mal
estar. Dona Selma, com um copo de água, estava inquieta. Eram 30 a 50 moças,
todos os dias, e apenas 15 quartos.
"Leve-a
para a casa dela ou para sua casa ou para um hotel."
No
apartamento na Augusto de Lima, mais uma vez conversamos muito. Ela irá dizer
para a eternidade que gostávamos desses encontros e dos nossos papos. Intermináveis.
Anoitecia,
ela devia voltar para a sua casa. Apaguei as luzes. Ela parou em frente à
porta.
Foi a nossa
primeira noite. A partir daí, tudo deu certo.
Passeávamos.
Naqueles
seis meses, em Vitória, éramos um casal, nos primeiros dias de vida
conjugal.Terminava meu contrato com a agência de publicidade
Estácio&Moraes.
Ela estava
barriguda, linda. Fomos um casal feliz. Outro objetivo da viagem era que o
parto fosse longe de BH. Era uma mulher maravilhosa. Acredito e eu era um
grande companheiro, aquele que cuida de afazeres indispensáveis, lavava as
louças e fazia a faxina da casa com o mesmo cuidado ao dar banho nela. Era
nossa oportunidade. Estávamos decididos a não deixá-la passar. Fora um tempo
programado.
E que
acabaria. Como acabou.
Voltamos
para BH e ela voltou à sua velha vida antiga na casa de encontros da rua dos
Pampas, no Prado. Nossos trabalhos tomavam nosso tempo, ocasionalmente
dormíamos juntos no sábado ou no domingo.
Com Olga, a
minha noiva, tudo tranquilo até uma briga por um motivo fútil. Trabalhava na
Rádio Minas, uma das emissoras do empresário Ramos de Carvalho (*), radialista
que chegara de Londres, onde trabalhou por décadas na BBC, convocado pelo
governador Juscelino Kubitschek para participar de sua campanha para a
presidência da República em 1955, em que foi eleito e empossado no ano
seguinte.
Chegava na
rádio às 6h para terminar a redação do noticiário que entraria no ar às 7h com
Tarcísio Barbosa e Osvaldo Montes.
A briga foi
na noite anterior. Sempre tirávamos duas à noite e uma caprichada na manhã
seguinte.
Ela passara
uma pasta no cabelo cujo cheiro impregnava até as cortinas e os móveis.
Insuportável e enjoativo. Sugeri que lavasse o cabelo, aí a casa caiu, virou
uma fera. Não discutimos. Eu só ouvia. Mais de meia hora de uma louca
argumentação em que entrava desde a explicação da química daquele produto.
Decidi
aguentar o cheiro. Ela merecia. Andava nervosa, era o ciúme que ganhava corpo e
expressão. De repente, ela explodiu, disse que era um homem comum, que me
apavorava com a ideia de compromissos, que negava a cumplicidade com uma
mulher. Deveria me esforçar para ser uma pessoa diferente. Uma maçada. Calado
fiquei diante de duas horas de palavras pesadas. Nem por isso deixamos de lado
as duas trepadas antes de dormir. Virei
para o pé da cama bem distante de seus
cabelos.
Cansada e
satisfeita, dormiu abraçada aos meus pés. Eu não conseguia dormir nem na
poltrona da sala com a porta do quarto fechada ao tentar, inutilmente, isolar aquele
cheiro. Como dormir?
Cinco horas
já me preparava para sair, ela acordou.
Rodou a
baiana, começou resmungando e rápido passou aos gritos. Confusão. Comédia.
Agressão física.
Chamada
pelos vizinhos, a polícia entrou no apartamento. Marcelo Durães, escritor,
vizinho do apartamento da frente, ouvia atentamente. Ele anotaria aquelas cenas
e os diálogos bizarros com acusações ao companheiro, ao noivo,depois aos
vizinhos e à polícia.
"Vocês
não tem que entrar nisso".
Convicta de
que podia ditar regras e normas de conduta, ela ganhava tempo para atrasar
minha saída para o trabalho. Tinha tempo. Eram pouco mais das 5h, tinha duas
horas.
Gracinha,
nossa amiga, moradora do 6º andar, apareceu e me deu uma cobertura cerrada.
Cheguei na rádio a tempo de entregar o jornal das 7h.
(*) A outra
era a Rádio Pampulha