MaGrace sofreu um AVC, foi internada e morreu perto de completar 69 anos. Foto: Vera Godoy
Déa
Januzzi, 50emais
Ela se foi. Não como estava programando, com um jantar de despedida
antes da decisão fatal. Escolheu até o cardápio e as companhias de Murilo e
Selma Murça de Carvalho, amigos de uma vida inteira. Requintado como ela, o
menu do jantar seria assim. Em primeiro lugar, caviar preto, porque não gosta
do vermelho. Ostras são imprescindíveis, além de lagosta e filé. De sobremesa,
petit gatêau. E lógico, champanhe, mas tem que ser Veuve Cliquot, Cristal ou
Don Perignon, para celebrar a vida. Digo que esse jantar vai ter que esperar
muito tempo. Ela responde, com delicadeza, mas firme, sem medo, sem angústia,
sem tristeza: “Pode ser amanhã à noite, Déa.”
Um Acidente Vascular Cerebral (AVC) foi mais rápido que a decisão de
tirar a própria vida, porque MaGrace Simão, perto de completar 69 anos em
março, sempre foi decidida, ousada, diferente. Minha amiga desde os anos 1970
quando chegou ao jornal Estado de Minas, MaGrace foi embora ontem, dia 27 de
fevereiro, depois de alguns dias de internação e quatro paradas cardíacas. Sem
velório como desejava, ela foi cremada lá em Goiás, onde vivia nos últimos
anos.
Portadora de HIV há 20 anos, quando ainda não havia o coquetel para a
Aids, MaGrace mudou valores, teve um blog para falar dessa loucura que é viver,
e parou de ter medo da morte, de se preocupar com família. Com um andador, pois
desenvolveu uma neuropatia periférica que causava uma explosão contínua de dor
nos pés, ela nunca se intimidou. Acordava por volta de meio-dia e andava pela
garagem da casa. Só saía para ir a dois lugares: ao oftalmologista, pois tem
degeneração macular, e à infectologista. Sempre confessou que era feliz desse
jeito, pois sabia que problemas fazem parte da vida. Ela também nunca brigou
com o tempo. Deixava que ele corresse à vontade. A ansiedade também acabou. Se
ela se sentia solitária? Ela ria e respondia com a ousadia e a deliciosa
serenidade adquirida com o tempo. “Tem pessoas que enriquecem a minha solidão.
Outras me deixam irremediavelmente solitária”.
MaGrace partiu, foi embora deste mundo que ela já não se sentia à
vontade. Estava exausta. Mas hoje quero compartilhar com você, uma das últimas
mensagens que recebi dela no princípio de janeiro deste ano, quando comecei a
questioná-la sobre a sua decisão de não querer mais viver.
“Deinha, minha amada, nem me lembro sobre o quê falamos que te perturbou
tanto. Foi sobre a possibilidade do suicídio? É só cansaço. Ufa! Vou fumar e já
volto. Por acaso, você assistiu Menina de Ouro? Para mim, teve um significado
muito especial. Você pode puxá-lo no YouTube.
Quando meu irmão Josa se suicidou, não foi sua morte que me doeu. Foi
pensar em como ele estava sofrendo para chegar a tal decisão. No meu caso não
existe sofrimento. É só exaustão. Pense comigo: há 20 anos, minha vida se
resume a: acordar por volta do meio-dia, começar a ler o Correio Brasiliense;
às 13h caminhar na garagem, almoçar, acabar de ler o jornal (o que tenho feito
sem muita atenção, porque tudo me parece velho), começar a ler algum livro
(filosofia tem sido o mais constante),lá pelas 17h30m, coloco música e faço
algum exercício como sempre,–caminhar e exercícios visam somente a minha
autonomia –, às 19h, ligo a TV. Quando a noite chega é hora de começar o meu
dia. Sempre foi. E aí fico vendo os noticiários, também cansativos, além dos
filmes da Globo. Vou dormir lá pelas 3h da manhã como sempre. E tudo isso
entremeado com questões da saúde. Atualmente, estou com uma diarreia terrível.
No geral sinto-me ótima. Alguns problemas da “veieira”, como a
degeneração macular. Minha dor no pés é constante, em algumas horas específicas
que ela fica pior, como no final da tarde. E olha que tomo três remédios
diferentes para combatê-la. E na cama. Há 20 anos. Pense bem o que é isso.
Coloque-se no meu lugar. EMPATIA!!!!!! Amiga querida, desculpe-me por vomitar
tanta coisa em você, mas não vou voltar a falar de saúde. Minha cabeça viaja
que é uma loucura. Não consigo mais viver aqui na Terra. Para onde quer que se
olhe, ódio, violência e matança estão em todos lugares. Tudo muito podre e
pequeno. Pequeno em excesso. E aí quero me saciar com Universo, com Stanley
Hawking ou vídeos da internet. Como são assuntos complicados (eu nunca estudei
física, mas aprendi aos poucos o que é o nosso dia a dia, o nosso corpo, tudo,
absolutamente tudo: física, química e energia. Daí deriva tudo.
Acho que dá para compreender um pouco minha situação. Mas não se
preocupe, não será agora. Por enquanto tentando uma preparação. Querida,
acalme-se. O mais importante é você. Viva aí nesse lugar lindo que é a Serra do
Cipó. Procure entender um pouco os animais que talvez vivam aí. Para mim, eles
simbolizam mais a vida que nós ditos humanos, mas que somos mesmo os maiores
predadores da Terra e já caminhando para a poluição em volta desse planeta e já
tendo alcançado os oceanos. Te beijo com muito carinho e fale-me também de
você. Sua sempre amiga, MaGrace.”
E ponto final, pois agora tenho que aprender a viver sem ela.