terça-feira, 30 de agosto de 2022

ELIAS SIMÃO

 


Discreta presença ao lado dos filhos






MEU PAI




 MaGrace Simão

 

                        Se existe vida depois da morte, se a alma de alguém continua a acompanhar a vida de outra pessoa, possibilidade admitida pelo pai da doutrina Espírita, Alan Kardec, então ofereço esta crônica da semana a papai, ELIAS SIMÃO.

                       Em toda a minha vida foi a pessoa que mais dificuldades me deu para reconhecer o seu amor. Frio, seco, tido por muitos como mal educado, ao mesmo tempo em que recebia seus hóspedes com uma peculiar elegância; extremamente rico até certa época de sua vida, sabia desfrutar do melhor valorizando, porém, cada tostão gasto.                           

                     Quem era este homem afinal que merece ser descrito? Em primeiro lugar, HONESTO, como era reconhecido por todo mundo, até em São Paulo onde era dono de prédios.

                        Nascido em 1905, em Gibrail Accar, no Líbano, veio para o Brasil aos 5 anos, com sua irmã mais velha, Faride, seu pai, vovô Jorge e sua mãe, vovó Laila. Durante a viagem, começou uma espécie de epidemia no navio e iam jogá-lo ao mar. Vovó Laila escondeu-se no porão com ele. Desceram no porto de Santos e acabaram parando em Uberlândia. Foi lá que ele começou a vender galinhas. Daí pra frente não sei muitas coisas, lamentavelmente. Tornou-se um dos maiores beneficiadores de arroz, o que o enriqueceu. Não terminou o curso primário, mas dava a resposta em menos de 5 minutos a quem lhe perguntasse, quanto era 12.989 X 7.894.

                        Pelo que eu saiba dos 8 filhos que teve, eu fui a única a ser carregada em seus braços para tirar uma foto.  Apesar deste orgulho, durante muitos anos tive vergonha dele. E medo, muito medo. Então, era difícil identificar nele algum resquício de amor. Cabia a ele prover a família. Educação, era responsabilidade de mamãe e do primogênito, Régis, obedecendo aos costumes árabes.

                        Lá pelos meus 11/12 anos comecei a romper esta barreira. Surpreendia-o por trás, com um suave gravata e um beijo no rosto. Eu sentia que ele gostava, sem retribuir ou demonstrar. A coisa ficou feia com os meus 13 anos, com o namoro que era proibido. Aí tive de agüentar, noites a fio, ele e mamãe em meu quarto brigando.

                        Mas quando fugi para São Paulo, ao contrário dos pais da época, ele mandou me entregar todo final de mês, uma polpuda mesada, para garantir que nada me faltasse, caso necessário. Foi aí que comecei a identificar seu amor: Não por causa do dinheiro, mas de seu amparo mesmo contrariando todas suas expectativas.

                        Depois, senti claramente ter sido motivo de seu orgulho ao passar em primeiro lugar para o vestibular de Direito em Uberlândia e depois também em primeiro lugar para o vestibular de Comunicação Social em Belo Horizonte. Seus olhos brilhavam o que eu só tinha visto acontecer em situações raríssimas.

                           Os fatos que me constrangiam foram ficando no passado: como estar com uma amiga em casa e ele começava a gritar por algum motivo. Podia ser de manhã, de tarde, de noite ou de madrugada, tendo como testemunho auditivo, os vizinhos. Em compensação, nos Natais (que plural estranho), ele garantia a festa de todos nossos amigos, com os melhores uísques, vinhos e “champagnes”  franceses. Não participava ativamente. Só olhava. Não bebia, mas não reprimia, mesmo  quando ficávamos mais “altos”.

                        Mais tarde, um casal amigo da família, doutor Celso Queiroz e sua esposa dona Lourdes, assinavam o jornal para o qual eu trabalhava. Quando saíam minhas matérias, assinadas, telefonavam e avisavam papai. Na mesma hora ele comprava o jornal, recortava e levava para o banco para mostrar para deus e o mundo.

                        No Natal de 1982, cogitei não ir para Uberlândia na vã esperança de passar com um namorado. Às 20hs do dia 24, me toquei. Dei sorte: peguei um vôo e cheguei em casa às 23h30m. Fui recebido por ele com um forte abraço. Pela primeira vez na vida vi seus olhos marejados. Uns dois dias depois, eu estava no meu quarto, preparando-me para dormir, quando me deu um clique: era mais ou menos meia-noite e vi as luzes de seu quarto acesas. Mamãe estava dormindo no quarto de baixo com uma neta. Não tive dúvidas e fui falar com ele. Ficamos até as 5 da matina.Perguntei tudo que sempre tive vontade, inclusive sobre sua intimidade.

                        Ele tinha hábitos pitorescos,como usar sapatos 2 números acima do seu. Tomar raiva da atriz que protagonizava papel de infiel. Andar tão rápido que tinha que parar na esquina para mamãe alcançá-lo. Pedir carona para qualquer pessoa, mesmo os desconhecidos. E mesmo tendo perdido seu dinheiro nunca perdeu a elegância: só andava de ternos com gravatas italianas. Seus carros importados, último tipo, só para viagens.

                        Em agosto de 83, o jornal me indicou para fazer a matéria sobre o Dia dos Pais. Fiz formalmente, mas terminei, com um espaço específico entrevistando papai. Em setembro, tive uma depressão, tirei licença e fui para Uberlândia. Ao encontrar papai e vê-lo com os olhos amarelos e muito magro constatei: ele está doente do fígado. Minha hipocondria tinha me ensinado muitas coisas. Chamei meu primo Marcelo, que o examinou, e no dia seguinte ele estava internado com câncer. Estava tão adiantado que não se sabia se era no intestino com metástase no fígado ou vice-versa. Achei estranho, pois ele tinha uma alimentação rigidamente saudável.

                        Foi tudo muito rápido. Como ele sofreu durante sete dias! Como doía vê-lo naquele estado. No segundo dia, pediu-me um cigarro. Lógico que dei. O cigarro, que tanto o atormentou durante a vida, por não conseguir largar o vício. E justamente o pulmão e o coração saudáveis o impediam de morrer. Eu não agüentava mais vê-lo sofrendo. Alisava sua barriga para ajudá-lo. Pedi a Marcelo, que não me atendeu,é claro, para não dar o que quer que fosse que o estivesse mantendo vivo. Foi a primeira vez que pensei em eutanásia. E quando seus olhos se fecharam definitivamente, parte do meu coração se fechou com eles. Meu porto seguro se foi. E como eu disse na matéria do Dia dos Pais, repito agora: graças a você pai, me tornei jornalista e é com muito orgulho que assino MaGrace SIMÃO. Sei que foi o melhor presente que ele recebeu de mim. Ainda bem, muito antes do meu HIV. Espero que seus netos e bisnetos conheçam sua história.

 

 

PS- Há alguns dias recebi um comentário de Nanda, filha do casal Queiroz, citado acima. Depois de mais de 30 anos nos reencontramos, graças ao meu blog. E recebo depois um email, ainda mais gratificante:

“Saiba que no picadeiro de nossas vidas, sempre estive na arquibancada para te aplaudir”.

Uma poeta, para quem eu pensava ser seca e sem expressões afetivas. Um beijo, Nanda!  

 

 

Postado por MaGrace Simão em 07/08/2009