Na guerra de merda, o príncipe
Charles ficou
com medo de sujar a roupa
José Altino Machado
Em Boa Vista, capital de Roraima, a informação era de que seríamos
visitados pelo príncipe Charles, herdeiro da Coroa Britânica. Viria para
verificar a situação e os danos do extrativismo mineral garimpeiro nas áreas
ditas dos índios ianomâmis, aproveitando para, também, constatar e conhecer o
sofrimento da grande tribo e de outras minorias étnicas.
Sempre me impressionara a “simpática e legal” pirataria inglesa...
filmes com espetaculares imagens e bravuras a justificam; ser pirata é coisa
boa. E eles estão em todo e qualquer lugar onde a produção de matéria–prima se
apresente. Hábito secular, sem dúvida... E não se vêm suas reais incursões
expostas na mídia por aí afora. Ninguém nunca discute a amplitude de seus
interesses monopolizadores, mascarados pelas campanhas ambientais. Dominam e
bem aparecem!
Agora, notícias ainda não oficiais diziam que o príncipe inglês
viria mesmo até Roraima.
A preocupação era grande demais. Há muito já discutíamos sem nos
entendermos, o diabo da questão de soberania até interna, que o brasileiro
costumeiramente identifica como coisa de soldado. Debatíamos ainda contra as
extremadas opiniões externas sobre a Amazônia, a vida das pessoas que aqui
estão sem nenhuma conclusão ou conciliação de propósitos. A vinda da
aristocrática autoridade só faria piorar; sabíamos.
Esse cidadão vinha do outro lado do oceano representando uma
realeza, para um mundo onde nunca tivéramos rei real de coisa alguma, nem vassalo ou
servo, a não ser no carnaval, claro. Portanto, tínhamos a certeza de tumulto.
Intimamente, eu ficara resolvido, até por curiosidade, a entender as razões e
motivos dessa visita.
Segui para Manaus onde certamente haveria melhor informação. Na
chegada, fui diretamente procurar o Comando Militar da Amazônia, que
seguramente estaria muito bem informado da possível presença de Sua Alteza
real.
Fui recebido pelo general de brigada, acho que único no Exército
Brasileiro nascido e criado na Amazônia, Taumaturgo. Era o chefe do Estado
Maior do General de Exército, Santa Cruz, do CMA. A mesma dupla de generais do
caso do Rio Traíra e outros afora. Participantes ativos do período agitado.
O general confirmou: o homem vem aí.
Bom, o que se conversou, a partir daí, não importa muito em
relação aos fatos que se seguiram. Saí de lá, porém, com os brios machucados e
minha lógica nacionalista em confusão. Às pressas, fui direto ao escritório,
ainda em Manaus, para começar a fazer contatos por telefone, com todas as áreas
extrativistas conhecidas e com as cidades do interior, nas quais tinha relações
com pessoas de peso, que saberiam muito bem junto fazer uma análise sensata e
ponderada do que me incomodava.
E não busquei críticos ferozes contra as intervenções forasteiras
na Amazônia, nem aqueles imbuídos de conceitos nacionalistas mais arraigados e
arcaicos. Procurei gente que absorvesse a informação e produzisse resposta
equilibrada.
Incrível! O resultado foi unânime!
Pessoas a centenas, e até a milhares de quilômetros de distância
umas das outras, reagiram da mesma forma. Consideravam um absurdo aquela visita
acontecer bem no período em que tentávamos resolver a exploração econômica em
terras, agora, pretensamente dos índios ianomâmis.
Havia celeuma demais para ainda se agüentar opiniões de fora.
Todos diziam estarmos em época de tomar atitudes em relação à Amazônia e época
de encontrarmos denominadores comuns para os interesses, engendrando possíveis
conciliações.
Aquela visita significaria realmente um complicador e mais
desentendimento. A Amazônia, com sua floresta, estava no auge, mundo afora.
Hoje, parece até que o mundo enjoou um pouco dela, mas, naquela
ocasião, no ápice das grandes e internacionais discussões, qualquer flatulência
que um governante do exterior por lá tivesse, a conta da limpeza sempre era
paga por nós.
O governo brasileiro, endividado, metido nesses acordos
internacionais econômicos, nos vendia e aproveitava logo para assinar suas
rolagens de dívida. Dívida no Brasil deveria chamar-se bola, pois aqui elas só
rolam. E assim que eles chegavam, para acertá-las, a primeira exigência que
faziam era algo com referência à Amazônia. E nos prejudicaria muito. E já no
meio de uma confusão dessa, com nosso presidente adorando aparecer ligado à
Amazônia, vem um homem desses, um príncipe, para dar palpite, se fazer
fotografar, se fazer filmar na Amazônia e, principalmente, internacionalizar
sua opinião premeditada, que já sabíamos qual seria. Podíamos prever a
repercussão negativa para todos nós que disso adviria.
Depois de amealhar as mais diversas opiniões por telefone em
diversos lugares, em casa procurei descanso, ordenando pensamentos, acomodando
qualquer rancor, de modo a encontrar uma saída que mudasse o rumo das coisas.
Piorei...
Dia seguinte, logo cedo, voltei a fazer muitos outros contatos,
mas, agora, com gente mais rebelde, e agressiva. Transmiti a eles o consenso
encontrado em alguns pontos de nossos sindicatos, da União Sindical dos
Garimpeiros da Amazônia Legal, e também outros não pertencentes a ela, buscando
opiniões de classes trabalhadoras, madeireiros, colonos, fazendeiros. Todos
achavam que deveríamos contestar a visita, e principalmente porque a jóia da
frota inglesa iria adentrar a Amazônia, não convidada por ninguém do lugar,
sequer um governador de Estado. Sabiam ser coisa do governo federal ou
iniciativa do próprio governo inglês, instigando ansioso o convite. Sabiam que
viria o príncipe dar sua opinião e dizer o que pensava a Inglaterra sobre como
deveriam ser as coisas por aqui; e ninguém gostava disso... A visita não
deveria acontecer!
Mais aguerridos e anárquicos, já respondiam bolando mil planos
políticos e ações de como poderíamos impedir tal pretensão. Nas conversas
iniciais já surgiam inúmeras variantes que poderiam levar a bom termo a
intenção do veto. Concordavam, entretanto que, primeiro, deveríamos tentar uma
negociação política com nosso governo, por intermédio das pessoas responsáveis
por instituições, às quais tivéssemos acesso e junto às quais possuíssemos
credibilidade.
Amadurecidas as idéias, três dias mais tarde, voltei ao Comando
Militar da Amazônia e fui direto ao general Taumaturgo que nos levou ao general
superior, comandante da Amazônia, Santa Cruz.
Calmamente, fui expondo a questão: “General, estamos aqui,
novamente, e desde que daqui saímos, há quase uma semana, me dediquei a colher
opiniões, saber das razões de todos que aí estão e que, de alguma maneira,
representam interesses das pessoas que têm influência, que moram aqui e,
principalmente, na formação da opinião pública. Estão todos, absolutamente,
contra essa visita. Não posso dizer o que nós poderemos fazer quanto a isso,
mas quase com certeza, senhor, se esse homem chegar a Roraima, acho que o
governo brasileiro vai passar maus momentos com dissabores diplomáticos e,
talvez, nós também, porque não sabemos a força da reação contra nossa decisão.
Achamos todos muito melhor desencorajar o governo a permitir tal pretensão e
sugerimos que os ingleses sejam acomodados em outro lugar. O clima não está bom
para ninguém. Tivemos lá o senhor Severo Gomes, senador da República, que
tentou fazer da situação amazônica, em Roraima, um folhetim de propaganda
política. A única coisa que ele conseguiu, nas ruas de Boa Vista, foi as
pessoas passando a mão em sua bunda e o colocando em situação humilhante.
Aquela figura de grande político que ele possuía saiu arranhada e bem
desarrumada. Tivemos outros que fizeram o mesmo papel: entraram desconhecidos e
saíram anônimos. Fato ocorrido com o senador Eduardo Suplicy. Aconselhável
seria que o governo federal entendesse que não era um bom momento para essa
visita. A tentativa de sempre, de bom relacionamento com a Inglaterra, acabaria
prejudicada. Sugerimos ao governo que deixe isso para outra ocasião. Hoje, há um
choque de interesses entre aqueles que defendem a causa indígena, que, para
nós, é utópica, mas não para eles escudados em outros interesses. Respeitamos
as verdades que eles apóiam, mas que só são verdades por estarem a milhares de
quilômetros de distância daqui. Preferimos, evidentemente, considerar os
interesses de sobrevivência das pessoas que aqui vivem. Melhor para eles,
ingleses, que mantivéssemos o devido respeito, esperando que fizessem o mesmo
conosco. Quem sabe, numa outra oportunidade mais longínqua, ele poderia até vir
aqui assistir uma festa dos bois “Garantido” e “Caprichoso”, em Parintins (AM)
ou, melhor ainda, o “Círio de Nazaré”. A gente poderia deixá-lo até segurar na
corda”...
Acreditávamos, realmente, que, naquela ocasião, a visita seria
ineficaz e tumultuaria a relação entre dois países. Obtivemos do general a única resposta viável,
pela posição que ocupava :
– Vou comunicar ao nosso ministro e tentar convencê-lo, e, após,
que leve ao conhecimento do Itamaraty e à Presidência, para que tentem mudar
idéias.
Não acreditei muito, achando que aquilo ficaria por ali passando
em “brancas nuvens”, permanecendo só na compreensão daquele corpo de
comandantes do CMA.
Surpresa! Não menos que uma semana depois, já éramos convidados a
comparecer novamente perante o general para nos comunicar que o governo
brasileiro, através do Itamaraty, nos assegurava que não aconteceria a ida a
Roraima. Tinham resolvido que o iate Britânia, que estava conduzindo o
príncipe, subiria o Rio Amazonas e se reteria em Manaus, com encontros
políticos, recepções, visita ao encontro das águas, natureza viva. Roraima, de
jeito algum.
Saí dali contente. Puxa vida! Até que enfim, uma ponderação nossa,
de alguém envolvido com a Amazônia, serviu de bom conselho ao nosso governo.
“Valeu, Zé!” – disse a mim mesmo...
Ao comunicar o resultado àquelas pessoas que eu havia incomodado
tomando sua opinião, outra surpresa. Até então, eu não tinha observado
profundamente, as opiniões dos povos amazônicos em relação a forasteiros
opinativos, mesmo porque, acreditava tão-somente eu as desprezar com total
repulsa. Minhas atenções estavam mais voltadas à Roraima e seus acontecimentos.
Importava e muito o que aconteceria aos de lá, principalmente a questão interna
de territorialidade e soberania brasileira aos povos índios e não-índios
naquelas terras. Meio cego andava com o contexto geral.
Bem por isso, a resposta daquela gente foi dura. Alguns chegaram,
mesmo a uma insinuação maldosa quanto à minha atuação como interlocutor.
Disseram que eu estava satisfeito em ter conseguido impedir a ida inglesa à
região na qual estava e exercia minhas atividades, não me importando com as
demais. Deixaram claro que meu nacionalismo estava capenga e incoerente.
Minha primeira reação foi achar que estavam sendo muito radicais,
pois não era bem assim. Eu menosprezaria aquela presença em qualquer outro
lugar; apenas em Roraima acreditava que pudesse causar danos maiores, devido à
tensa situação vivida naqueles dias. Não considerava tão ruim a idéia da subida
do rio, por pura exibição, tirando fotografias, para no final sair falando
bobagens. Mesmo assim tendo ponderado, o pessoal continuava contra-argumentando
com firmeza que a presença dele carregava e tinha conotação política muito
grande. Não há nada de turismo no que vêm fazer, diziam.
Aborrecido e teimoso, disse-lhes que tínhamos lavrado um tento ao
alterar os planos de um “chefe de estado”, meio de fantasia, é verdade, mas um
chefe de estado. Dito isso, comecei a procura de ensarilhar armas.
Porém, inconformado com a chamada à ordem, muito refletia e, mais
ainda lia muito; comecei a pesquisar e a estudar a presença de ingleses aqui na
Amazônia, mesmo no sul e restante do Brasil. Ao final, reli vezes a história da
disputas com a ex-Guiana Inglesa. O que conhecia estava em memória de
estudante, e já era suficiente para estar meio atravessado com eles. Andaram
nos tomando alguns pedaços na fronteira em Roraima, questão conhecidíssima e
citada.
Encontrei histórias de como um simples barco, que chamavam canhoneira,
subiu o Rio Amazonas e o bloqueou com
sua artilharia. O governo brasileiro teve que, praticamente, “sentar na boneca”
com o acordo desejado e imposto por eles. Tudo outra história, de pouco
interesse agora, mas com grande significado no passado e conseqüências
irremediáveis.
Minha má vontade e animosidade só cresciam.
Realmente... que hora esse homem escolhera para vir aqui!
Aqueles companheiros, que haviam discordado da presença
principesca, rio acima e rio abaixo, através da história encontraram em mim um
puta aliado.
Mesmo assim, procurei a me inteirar mais profundamente de tudo o
que a Inglaterra representou no passado e o que tem representado até os dias de
hoje. Leve tendência de melhora, mas sempre mantendo grilhões em relação a
recursos naturais principalmente, na área de minerais que ela ainda tem pleno
domínio de mercado.
A única coisa do Brasil que neles impõe respeito mais
concretamente, e da Amazônia, são as riquezas minerais. Não pelo tamanho das
jazidas abertas, mas pelas desinformações das dimensões e potencialidades ainda
desconhecidas, que assustam quando surgem pujantes, desequilibrando qualquer
mercado. Poucas pessoas sabem que os interesses ingleses atingem firmemente
países como Canadá, Austrália e África do Sul, que mesmo como países
independentes, têm seus interesses minerais seguros à mão de ferro por grupos
britânicos.
Concluí meu raciocínio de que aquele cidadão não deveria vir aqui.
Não seríamos casa de mãe-joana. Nem mais pela lembrada plantinha
da borracha que levaram daqui para a Malásia.
Voltei ao Comando Militar
da Amazônia. Nem sei se o general me viu com prazer ou não, mas, com certeza,
estranhou estar voltando tão depressa. Cheguei falando tal qual arara baleada,
expondo tudo, num só fôlego. Saíra dali, antes, até satisfeito com a resposta
do governo brasileiro, alterando o roteiro da visita.
Argumentava o complicador que, apesar de termos resolvido o
problema de Roraima, o pessoal do interior de muitos outros lugares, não
concordava com a visita e não tinha acordo. A decisão de todo mundo é que esse
homem não deveria subir o rio, não podendo adentrar a Amazônia. Ninguém
desejava ou aceitava isso agora. Além do que, o percurso foz-Manaus é longo,
quase dois mil quilômetros, cinco dias para chegar, navegando dia e noite.
Deixei aí escapar a primeira advertência, dizendo que a gente não sabe o que
pode ocorrer em caminhada tão longa. Não teríamos noção ou limites de uma
explosiva agressividade ou até palhaçada que pudesse ocorrer. Ponderamos a
necessidade de melhor aconselhar novamente ao governo brasileiro, sobre
inconveniência e falta de oportunidade da visita, pedindo seu cancelamento. Não
se tratava mais de Amazônia, Manaus ou de Roraima – o constrangimento seria
nacional.
Ainda me fazendo de militante regionalista critiquei a mentalidade
em nosso governo e dos habitantes do sul de que os povos que aqui estão apenas
acatam ordens. Difícil para nós entender que a Amazônia não é uma colônia e
muito menos uma propriedade nacional. Causam horror se aceitar diálogos de autonomia
parcial ou soberania compartilhada. A Amazônia é o próprio país, não resta a
menor dúvida, e nós, com ele, a nação. Concluí minha oratória “amazônica
nacional”, insistindo em nova reflexão sobre o assunto.
Solicitei, de modo enérgico (o bastante permitido pelo ambiente),
que fizessem novos contatos com o governo federal para cancelar a viagem do
marido da princesa. A exigência parecia um tanto descabida, mas com o
descontentamento de todos com tudo aquilo me sentia bastante fortalecido para
impor a idéia. Saí do CMA de cabeça alta
e até metido a besta.
Outro calvário, porém.
Discute para lá, fala para cá, e eu sentindo os ecos das ordens e
contra-ordens. Finalmente, mais uma vez,
chamado de volta ao Comando Militar, em coisa de pouquíssimos dias. Vieram com
arrogância: “A visita está agendada; não há como fazer cancelamento, agora. O
barco já esta aí, no meio do Atlântico”.
Lamentei afirmando que agora a reação já estava bem organizada e
que o homem não subiria o rio. E enfatizei: “Não, não sobe, mesmo!”.
O general, entre curioso e furioso: “Vão fazer o quê? O quê vocês
podem fazer para impedir? Evidentemente, qualquer coisa que vocês procurem
fazer para impedir, seremos obrigados a reprimi-los, puni-los até, se for o
caso, com o recurso da força”.
Lamentei novamente, mas
dessa vez doeu ouvir um general falar em uso de força novamente na Amazônia,
reação pouco inteligente em todas as divergências. Mesmo sofrido, continuei:
“Se, algum dia, alguém do governo brasileiro imaginou que, pela minha
influência, pudesse existir algum recurso de força, rebelião, saque, interdição
de estrada, de rio, enganou-se. Não esperem isso, nem de mim, nem da
organização que represento. Acredito, sinceramente, que não é bem o caso, e em
matéria de força sabemos que são bem mais equipados que todos nós. Mas,
seguramente, somos bem mais ágeis e com maior liberdade de aplicação da
inteligência. Não é o caso de sermos melhores, mas nossa causa goza de simpatia
da população, e nossa mobilidade é, sem sombra de dúvida, muito superior à de
qualquer órgão oficial. Não nos sentimos compromissados a certas regras, certos
regulamentos. Temos aí uma abertura incrível para buscar uma saída fazendo com
que essa aventura caía no descrédito e
no ridículo, com repercussão mundial. Aguardaremos apenas o momento oportuno”.
Encerrada aquela reunião, peguei meu avião direto para Alta
Floresta (Mato Grosso), ninho da turma de parceiros mais agressivos e onde
estavam os “Irmãos Metralha”, excelentes aviadores e companheiros de nível. De
lá para Itaituba, berço dos garimpos, e outros lugares, na busca de incendiar
os espíritos de outros colegas. Não mais numa ação política, mas numa atitude
de rebeldia que pudesse transformar em realidade as promessas que eu fizera ao
Comando Militar da Amazônia. O necessário era que fôssemos muito inteligentes,
senão...
Absolutamente convictos de que se o príncipe estaria vindo à
Amazônia para levar a merda às famílias e aos povos que ali estavam, levaríamos
merda ao príncipe. Simples.
Imediatamente, fomos a cidades como Santarém e outras nas margens
do Rio Amazonas e combinamos com os limpadores de fossas o dia da necessária
limpeza e começamos a comprar sacos de plástico de lixo. Grandes, frágeis e
fracos, como a cabeça dos fabricantes que os produzem, mas que, no caso, seriam
excelentes depositários de fezes e daquela água fedorenta de toda fossa.
Encheríamos os sacos, deixaríamos lacrados para não impregnar nossos aviões e
bombardearíamos o iate Britânia com eles. Poderia acontecer que não
retrocedesse e, talvez, até chegasse a Manaus. No entanto, certamente, como o
vento da Amazônia é sempre rio acima, dias antes da possível chegada, Manaus já
estaria sentindo o cheiro do príncipe das merdas.
Não sabemos como foi que o governo, aí revestido de Exército,
tomou conhecimento de nossos planos. Não sabemos, até hoje, como descobriu o
que faríamos. Andaram publicando que eles têm uma excelente rede de espionagem.
Não acredito muito nisso, mas admito, porque todo governo que se preza deve ter
uma rede de informações. Esse é o trabalho deles. Se existisse uma rede assim e
a nossa Presidência fosse informada por sua “competência”, o maluco presidente
de então não teria sido cassado mais tarde. Chamou de verde-amarelo, vieram de
preto (ou os informantes sacanearam)...
Enfim, tomaram conhecimento da nossa movimentação e que os
preparativos estavam avançados. Os aviões que voariam seriam seis
Centurion-210, aviões rápidos e facilmente manobráveis, inclusive a baixíssima
altitude. Não haveria perigo de errar nenhum alvo. Já éramos bons lançadores
aéreos de mantimentos em plena selva, em minúsculas clareiras; para nós seria
muito fácil acertar um barcão, com aqueles sacos. Único medo era que uma
porcaria daquelas arrebentasse dentro dos aviões e os impregnasse para o resto
da vida. Treinamos no Vale do Tapajós e em alguns outros rios. A pontaria já
estava boa. Não treinávamos com sacos cheios de dejetos, mas alguma coisa
equivalente em peso, sem cheiro, mas com mesma consistência e volume.
Acertávamos os alvos com muita facilidade. Atingíamos até canoa.
Faltava pouco tempo para o homem chegar, e, de novo, nos chamaram
ao Comando Militar: Lá veio o General e bravo: “Já sabemos o que vocês estão
querendo aprontar. Não queremos nem que conte; eu próprio não quero saber por
você, senão o prendo. Aconselhamos que não façam isso. Está havendo aí um
reestudo para o príncipe não vir nem a Manaus; ele vai chegar só até Belém. É
melhor vocês ponderarem um pouco mais, para que nada aconteça. Nós não queremos
que isso acabe de uma forma ruim e comprometa, ainda mais, as questões da
Amazônia mundo afora, com uma atitude impensada de vocês”.
Repliquei: “Impensada por nós, não, mas por eles que acreditam lá
fora que aqui não tem ninguém. E digo: debaixo deste manto de anonimato tem
muita gente, e estamos aqui. Nossa
opinião nunca valeu de nada em lugar algum, mas agora vai valer. Está mantida a
intenção. Para ele chegar a Belém, que não é uma cidade litorânea e, sim, de
afluente, terá de ir navegando pelo Rio Amazonas, lá aportando por esse
tributário. Há uma centena de quilômetros para chegar da foz à cidade.
Continuaria dentro de nossa proposta e
alvo. O príncipe não vai subir o rio, nem para chegar a Belém. Podemos pegá-lo
nesse trecho, no médio ou alto Amazonas, tanto faz. O alcance dos aviões é
perfeitamente possível para qualquer
desses lugares. Até logo!”.
Saí dali meio triste porque me pareceu que se, até então, nós
contávamos com uma velada anuência por parte do general, e àquela altura o
Comando Militar da Amazônia começava a divergir, não filosoficamente das nossas
intenções, mas nas atitudes.
Abatia-me novamente a certeza do que sempre afirmara, que melhores
amigos, piores aliados possíveis. Sempre assim, nunca podendo tomar atitudes
coerentes e necessárias no momento, por causa do enquadramento a regulamentos e
hierarquias a que devem obediência.
Preocupado, transmiti à
turma que não poderíamos contar muito com o pessoal fardado; talvez nem mais
com sua tolerância. Parecia que iríamos ficar sozinhos na jogada e,
evidentemente, ainda que só moralmente, com o mundo civil da Amazônia.
Do jeito que as coisas corriam, muitos moradores de diferentes
lugares já estavam sabendo o que a gente ia fazer e acompanhavam com interesse
aquela movimentação toda. De fato, parece que nada fica escondido na Amazônia;
como não tem muita novidade, nada a comentar, o negócio lá é fofocar.
Estávamos resolvidos a ir de qualquer maneira, para que saísse na
televisão, para que saísse em tudo que é jornal e revista: o diabo de saco de
merda voador, caindo para tudo que é lugar no iate Britânia.
Já gozávamos até o trabalhão desgraçado para lavar aquele navio
depois. Único lamento era sabermos que ali estaria Lady Diana e seria um
perfume ao qual ela não estava e nunca esteve acostumada; mas, a decisão estava
mantida.
Até que acabaram com nossa alegria.
O homem, já no Atlântico afora, qual foi a nossa
surpresa quando nos chega a notícia de que o governo tinha orquestrado
as coisas de tal modo que o príncipe sequer entraria no Rio Amazonas, e que o
iate atracaria na foz, ficaria lá parado e um helicóptero da Marinha Brasileira o transportaria a
Belém.
O lado aventureiro murchou; a inconseqüência perdeu a vez de dar
espetáculo. Seriam vôos sensacionais, missão meio camicase, em termos legais,
podendo acontecer até cassação de carteira de alguns pilotos. Ficamos
frustrados, ninguém mais teria registro de uma aventura daquela. De raiva, não
me dei por vencido. Esse homem também não entraria em Belém.
Começamos a agitação urbana, na qual não tínhamos nenhuma
experiência. Só sabíamos quem era o pessoal que sempre a fez tão bem e que
gostava e adorava fazer bagunça perto da casa do papai, porque quando a polícia
chega e o pau come, corre para debaixo da cama dele e o velho segura as pontas.
Estudantes. Procurar os estudantes. Não seríamos nós mesmos a procurá-los. Vão
pensar que estão servindo aos nossos propósitos. E, com certeza, não tínhamos a
simpatia deles numa cidade como Belém, porque, segundo dizem, ela, de Amazônia,
só tem os ganhos; os encargos ela nunca teve. Até como capital do Pará, única
capital que está de costas para o Estado, só se mexe para fora, para dentro,
como dizem, é outra cultura. Desde a época dos portugueses - e permanece até
hoje -, é muito complicada a relação do povo de Belém com o restante da
Amazônia.
Encontramos os caminhos, encontramos os meios nas áreas estudantis
e sindicais, através de conhecidos, que pudéssemos influenciar e tomar a
direção do movimento que desejávamos naquela hora . Até colunista de jornal foi
convocado para começar a agitar.
Em pouco tempo, Belém estava contaminada; a idéia germinara e
fervilhava. Pelos resultados alcançados, o homem também não iria mais lá. O
governo brasileiro ficava, cada vez, em situação pior. O presidente do Brasil
estava com uma dificuldade “monstra”.
O barco chegou.
Atracou lá fora e o helicóptero foi lá.
Nosso presidente da época, lógico, na “boca”; foi lá ao barco e
voltou. A real presença viria, desembarcaria na Capitania Naval, teria uma
reunião e dali mesmo iria embora, direto, para o aeroporto.
Belém urbana, nem pensar.
Não voltaria de barco, voltaria de avião, para o reinado de sua
mãe.
No entanto, para voltar de avião ele teria de sair da Capitania
dos Portos e percorrer um pequeno canto da cidade para chegar ao aeroporto. E
aí nosso serviço de inteligência se infiltrou outra vez, conseguindo que todos
aportassem lá e dessem ao príncipe, pelo menos, uma simples mostra e
humor do que teria acontecido se tivesse adentrado a Amazônia. Em todo diminuto
percurso ele foi vaiado, criticado, e, assim, ficou bem demonstrado o humor e
desagrado dos povos daqui com a presença dele.
Temos que fazer aqui uma ressalva: como bons brasileiros, grandes
admiradores da natureza bem viva, não podíamos deixar de aplaudir e deixar de
reconhecer a classe e a beleza; foi unanimidade: Lady Diana
escapou.
Enquanto vaiava-se o príncipe, gritava-se, e com muitos aplausos:
Diana! Diana! Gostosa! Gostosa! Gostosa!
Pelo seu sorriso, parece que sabia que aquilo era tão-somente para
ela. Tanto assim que, na escada do avião, onde todos entraram na maior
velocidade possível, buscando o interior da aeronave, ela, não; parou no topo,
voltou-se e acenou para todos os apupadores do marido. Deve ter dado briga do
casal.
Pela expressão, acho que Diana saiu feliz e nós também. Não deixou
de ser uma imposição dos povos da Amazônia a uma opinião de abrangência
internacional.
Pela primeira vez, nós, realmente, havíamos mostrado unidade e
força, porque se parar para imaginar que aqui, no cantinho de Belém, na beira
do Atlântico, até lá, no finzinho da Amazônia, o sentimento era comum e de
todos e nosso orgulho engrandece.
Uma “senhora consciência” foi formada. Essa visita nos agredia e
não aconteceu. O governo recuou. As intenções inglesas também recuaram por
pressão política. As campanhas publicitárias, mundo afora, em relação a nós,
também serenaram um pouco. Sentiram todos que o caminho não era esse. O
acontecimento modificou muita coisa.
Este pequeno episódio carregado de “merda” transformou muito a
política da Amazônia. Os adversários de nossa presença ficaram velhacos.
Pressão e força, só de longe. É bem verdade que o governo federal passou a
tratar de dissolver e desconhecer todas as entidades, como a nossa e muitas
outras, que pudessem agrupar desejos, vontades, influências e imposições
contrárias a seus propósitos na Amazônia.
Recebemos o troco, mais tarde, em outras situações, com o
rompimento total, de qualquer diálogo. A não promoção do general Taumaturgo a
general-de-divisão veio como injusta represália, por nos ter acolhido e ter
participado das nossas conversas, mostrando seu interesse na questão, coisa
que, segundo os grandes, não poderia ter ocorrido. Foi para a reserva. O
general Santa Cruz, este já era quatro estrelas; apenas, vencido o tempo, se
retirou do cenário e não acredito que tenha recebido a menor sanção. Ele já não
dava muita confiança, mesmo.
Em verdade, o quadro mudou, e mudou muito. Se mudou para melhor,
não acreditamos; para pior, não pode. Em compensação, a Amazônia, a partir da
hipotética batalha das merdas, não criou mais um rosto representativo para
dialogar com quem quer que fosse.
Me aquietei, e fui para casa dormir.