O Dia Anterior
“Ainda o pensamento
criminoso de um malfeitor
possui mais grandeza e nobreza
do que os prodígios dos céus”.
Hegel
O homem sem destino
1ª. Parte
A missão da
escolta: matar o prisioneiro
A missão
oficial dos policiais era transportar o preso da penitenciária de Linhares para
a Penitenciária Agrícola de Neves. A verdadeira missão: no caminho, o preso
seria executado.
Simples, uma
tentativa de fuga e a execução.
Ao receber o
preso em Linhares, Juiz de Fora, os policiais se assustaram.
Como um
preso que mal conseguia andar teria condições de tentar uma fuga?
Nos 375
quilômetros de Linhares a Neves, as dúvidas começaram na recepção do preso.
Andrade, o
policial mais velho, a seis meses da aposentadoria, quis recusar continuar
aquela operação.
“Vamos
levá-lo, no caminho encontraremos uma solução”.
A opinião do
outro policial prevaleceu, a própria Penitenciária de Linhares se recusava a
aceitar o preso de volta diante da documentação que autorizava a transferência.
Consideraram
que diante da documentação recebida, o preso já estava entregue àquela escolta
e que não era mais um preso político da Penitenciária de Linhares.
Algemado, no
banco de trás, o preso percebe a tensão dos policiais. No volante, Andrade quer
discutir, imediatamente, uma solução.
- Vamos
abastecer. Vou trazer um café para você.
Os dois
policiais conversam. Olham para o carro. Fazem gestos. Eles não se entendem.
O preso
recebe o café.
Depois de
duas outras paradas, os policiais decidem conversar dentro do carro.
- Nós não
podemos errar.
- O que
faremos, então?
- Não sei
ainda, sei apenas que não dá para fazer nada. Colocaram a gente numa fria.
- Uma fria, não.
Numa sinuca. Não quero responder a um processo administrativo, muito menos ser
responsável por um crime.
A discussão
corria sem que dissessem claramente que tinham dúvidas se executavam ou não o
prisioneiro.
A simulação
da fuga estava afastada. Sabiam que responderiam por um assassinato.
“Não se
preocupem com ele, ele não tem pernas para andar, muito menos correr. É quase
um aleijado. Nem precisam colocar algemas a não ser para evitar uma tentativa
de provocar um acidente”.
Fora a
observação dos militares ainda em Linhares, Juiz de Fora.
Andrade
repetia e sinalizava que nesta fala havia, para ele, o descarte da proposta da
fuga e da execução. Mais grave ainda, os próprios militares de Linhares
poderiam depor e incriminá-los como assassinos.
O outro
policial ainda insistia em cumprir a missão.
- Recebemos
50%. Não vamos receber o restante? Temos que pensar uma saída.
- Entramos
numa fria, meu chapa.
Nas mãos,
eles tinham a vida e o destino de um homem.
Decidem
seguir para Ribeirão das Neves e entregar o preso na Penitenciária Agrícola de
Neves.
Lá, acontece
o inesperado. A direção da Penitenciária recusa receber o preso. O susto dos
dois policiais da escolta surpreende os policiais na portaria da penitenciária.
Não podiam aceitá-lo porque, simplesmente, não havia nenhuma autorização para
receber ninguém. Eles percebem que a expectativa das autoridades era que o
preso já tivesse sido executado no trajeto de Juiz de Fora a Neves.
- Não vamos
cair nesta arapuca. Vamos direto para Belo Horizonte, vamos jogar o preso no
Depósito de Presos da Lagoinha.
- Como,
faremos isto, Andrade?
- Não
diremos nada sobre a escolta nem sobre o transporte de Juiz de Fora a Neves,
deixaremos o preso na Lagoinha. Amanhã, no boletim de ocorrência, afirmaremos
que é um preso em trânsito para a Penitenciária. Vamos aguardar a decisão da Secretaria de Segurança e do
Exército. Ele é um condenado pela Lei de Segurança Nacional. Não decidindo
nada, nós avisaremos que estamos voltando para Linhares, em Juiz de Fora.
2ª. Parte
O registro detalhado desta noite no Depósito de Presos do
Departamento de Investigações da Secretaria de Segurança do Estado de Minas
Gerais serviria apenas para lembrá-lo do dia anterior. Sobre o dia anterior ele
somente poderia escrever quando tivesse total segurança. Décadas depois, P escreveu sobre este que está aí O
Dia Anterior.
Esta é a Noite ou o Dia Seguinte
A partir deste momento,
a história será diferente.
Agora, a história é outra
Um depósito
de gente
Muitos são
os personagens desta noite, eles vieram de muitos lugares – desceram os morros,
saíram de dentro de oficinas, de uma rua estreita e mal cheirosa, de lugares
mal afamados, eles saíram de bares, dos lugares da cidade onde os homens de
bem, as pessoas de bem, são desconhecidos.
Cirilo é um
personagem. Outros são Lourenço, um nortista cujo tragédia era não ter a cabeça
chata, o Louco e o Garçom Ribamar, o Ladrão, Baiano, o Assaltante e Tarcísio. E
o Traficante.
Existem mais
outros.
O cenário
onde se desenrola quase toda a ação descrita é a Cela 3 do Depósito de Presos
da Lagoinha, em Belo Horizonte.
O tempo de
duração desta noite vai das 23 horas às 11 horas da manhã.
Primeira cena: Ritual da Revista.
Duas
mocinhas, uma grávida, estão na fila. A fila era longa, seriam uns quinze
homens e mulheres, esperam a vez de passarem pelas mãos dos prontidões,
deveriam dar o nome e os demais dados de identificação para em seguida tirarem
toda a roupa.
Nus, um de
cada vez, eram encostados em uma parede, primeiro de frente para os policiais,
depois de costas, abaixavam, abriam as pernas, os braços e a boca.
Apesar de
toda esta vigilância e este rigor das revistas, a maconha, que era uma das
drogas mais combatidas pela polícia, era comerciada dentro do Depósito e havia
fartura para os fumante de jereré.
“Tranquilizamos os presos e a cadeia vai sem dor”.
A menina grávida apertava, angustiada, a mão da outra menina. Ela
via lá na frente homens e mulheres sendo despidos. Homens e mulheres obedecem
às ordens de quatro policiais: tirem a roupa, levantem os braços, abram a boca,
abram as pernas, virem (esse já está acostumado, diz um policial com as mão nas
nádegas do preso), abaixem, pulem como sapo, pulem como sapo, como sapo.
A menina tremia, suas lágrimas não tinham controle. Nem as
lágrimas e o pavor de um outro preso, um rapazinho miudinho, que não conseguiu
controlar a tremedeira também. Ele rodava na fila. Falava, falava baixinho,
falava alto, explicava, não era um igual a todos aqueles ali, "não era bandido
e estava ali, vexame, algo terrível, meu Deus, o que ia acontecer."
Ninguém parecia ouvi-lo.
Ele espichava os olhos para a porta de aço que havia jogado-o ali
no corredor e na fila.
Lá atrás estaria a sua última esperança, um detetive igual a ele,
mirrado e de carranca, mas um homem que ele acreditava que conhecia e que não
podia, não conseguiu identificar, localizar nem na rua e nem na cabeça.
Agora era o corredor e a fila. O corredor servindo de acesso
direto dos camburões aos xadrezes e de saída estratégica, muitas vezes, para a
polícia.
Na fila, a espera do ritual da revista. O som de fundo era um jogo
da nossa seleção em busca da glória do mundo.
A fila obedece ao ritmo inverso do futebol, anda quando o jogo
para. Por causa, talvez, do jogo, há um pouco de descontração entre os
policiais, assim na revista de uma mulher, as brincadeiras não acabam. Levantam
os seios para ver se não havia nada escondido, simulam um relacionamento,
simulam uma curra.
- Vejam como ela é lisa, pena é esse talho de navalha na barriga.
Vejam como é liso.
O cassetete percorre os braços dela e fica firme em cima do talho.
A televisão chama todo mundo. Há uma grande chance de gol.
O rapazinho miúdo quer se explicar. Tem na mão um remédio e uma
receita.
- Gente, eu tenho que tomar este remédio. É uma injeção contra
tétano. Antitetânica. Eu não briguei. Eu não bati em ninguém. Vejam, eu até
apanhei.
Ele consegue se aproximar de um policial. Já é o primeiro da fila.
- Cheguei no bar para beber. Faço todos os dias. É a verdade.
Dentro do bar, começou a briga. Não consegui sair e procure me defender.
-Só?
Ele calou. Certamente não acreditavam no que ouvia. Escutaram o
que ele falou. Pior ainda, responderam. Pior, duvidaram da sua verdade.
-Só? É só mesmo, seu filho da puta, fale de uma vez, sem piscar,
nome, endereço, onde foi preso e porque. Desembucha e rápido.
-Não sei porque fui preso. Eu desmaiei. Foi porque eu desmaiei e
me levaram para o hospital. Foi porque me levaram para o hospital, porque eu
não tinha dinheiro para pagar a vacina antitetânica.
-
Nome, endereço, local do evento...
-
Tire a roupa.
-
Levante os braços.
-
Encostes na parede.
-
Abra as pernas.
-
Abra as pernas.
-
Ande, abra as pernas.
-
Ande, filho da puta, abra as pernas!
Gritou o
policial velho e franzino.
Na sua
frente estava o preto da Escola de Samba Unidos do Seu Arthur, em homenagem ao
próprio seu Arthur lá do morro, um português velho e besta, que sempre que
podia deixava a turma do futebol, que era a mesma da Escola, beber sem pagar. Isto
quando o portuga também estava numa boa.
Era a hora
em que a turma da Escola de Samba escutava o portuga falar dos seus sonhos, dos
seus romances, das suas entradas noturnas em casas de senhoras respeitáveis,
dos seus medos de assombrações e dos seus passados que não se repetiam para
finalizar contado a história do grande desfile da Escola de Samba que levava
sempre o seu nome para as ruas.
Logo atrás
entra um moço pequeno e magro. Seus movimentos rápidos e secos davam o ritmo para
as suas explicações. De uma forma ou de outra procurava convencer os policiais,
todo mundo, se possível enganar a todos, para se safar dali. Ele tinha medo de
cadeia. Tinha medo do ambiente da cadeia e do que a cadeia podia lhe fazer.
Este pequeno moço é inquieto, tinha entradas avantajadas, cabelos lisos e
untados de vaselina.
Havia em seu
rosto medo e pavor. Em seu rosto o pavor se desenhava com traços mais nítidos
do que o pavor inocente das crianças famintas, o pavor das crianças famintas
não está em seus rostos, mas na consciência que temos da inanição e do perigo
para a vida de uma criança a falta de alimentos. O moço magro trazia em sua mão
uma receita e no braço um curativo. Em seu corpo havia rastro de sangue e mertiolate.
Ele estende a receita para o prontidão.
"Tenho
que tomar este remédio. É contra tétano. Antitetânico. Briguei com seis, não
apanhei, não entreguei ninguém e quem acabou preso? Eu."
Toda a briga
foi descrita para o policial de plantão. Este, enquanto fazia as anotações do plantão,
assistia a um jogo de futebol transmitido pela televisão diretamente do Rio. O
pequeno sujo de sangue e mertiolate, falando para o policial, tentava,
inutilmente, atrair a atenção das outras pessoas por perto. Nem os presos e nem
os eventuais policiais que saíam de suas repartições para ver o jogo conseguiam
se interessar ou ouvir o que dizia o pequeno. Policiais passavam com as mãos
cansadas e com alguns apetrechos de tortura, máquinas, as chamadas maquininhas,
pedaços de fios, paus, latas e pedaços de borrachas. Nesta época o choque
elétrico e a palmatória, assim como o pau de arara e o afogamento eram as
torturas mais comuns.
Encerrado o
ritual da revista, todos os presos registrados pelo plantão são remetidos para
a cela três.
O policial
iria fazer agora a ficha de uma das mocinhas.
- Qual o seu
nome?
Perguntou o
policial, enquanto comentava o lance do jogo que ocasionara um gol. Segundo a
opinião do policial de plantão e responsável pela televisão ligada, opinião que
todos os outros escutaram com aprovação, o atacante nunca mais repetiria a
atuação da copa de 70.
O policial
levantou a cabeça indagando com um gesto. Ela respondeu
–
Maria Lúcia
de Souza
–
Maria Lúcia
de Souza, repetiu o policial. Tem documentos?
Depois de um instante, voltou a olhar novamente a menina,
conferenciou com outro policial que tomava café, pelando, numa xícara de
alumínio e que, por isso mesmo, passava a xícara de uma mão para outra. Depois
nos disseram que ele tinha mania de tomar café daquela maneira.
- Olha, senhorita Maria Lúcia de
Souza, presta bastante atenção na chamada. Tem outra Maria Lúcia de Souza lá
dentro. A partir de agora seu nome será outro. Você se chamará Maria Lúcia de
Souza Segunda.
O policial acendeu o cigarro e disse para a menina que, dentro em
pouco ela conheceria a outra Maria Lúcia.
Na cela três
Quando chegamos, 14 pessoas estavam estendidas no
chão e fazia frio, já era quase meia noite. Os quatro que entraram agora
reuniram-se para conversar. Ninguém estava interessado em saber o nome de
ninguém, todos queriam saber o que cada um havia feito para estar ali.
Um senhor de cabelos brancos, magro, bêbado, como um maluco pede e
procura por um cigarro.
- Um cigarro? Pede.
- Um cigarro, quem tem um cigarro? Bagana? Qualquer coisa? Pó,
poeira.
- Por favor, você tem um cigarro? Ninguém tem?
Nenhum dos
quatro recém-chegados responde. Ninguém entendia o desespero daquele homem. Estranharam que a
única preocupação daquele homem fosse o cigarro.
O homem
girou por toda a cela, passou por cima de todos e voltou.
- Eu sou da
polícia, eles não sabem com quem estão mexendo. Amanhã eles verão.
- Eu sou eu.
Estes documentos mostram quem eu sou. Sou um funcionário público, alto
funcionário. Trabalho no Estado há tanto tempo que até já esqueci da minha
mulher. Esqueci que eu tinha uma mulher e que eu tinha filhos. Perdi tudo,
perdi a vergonha. Agora estes bundas sujas fazem isto comigo. Eles me pagam.
Você tem um cigarro? Por favor.
Agora
aparece o carcereiro que bate na porta.
- Silêncio,
o meu, senão tem pau.
Não se ouvia
nenhum som. O policial ainda fez hora na porta. Olhou paras as grades da janela
e saiu. Novamente, o bêbado quebrou o silêncio numa tentativa de ironizar a
situação.
- Pau?
Riu.
- Nem mole,
nem duro, de jeito nenhum.
O rapaz da
escola da samba mostrou um cigarro e uma bagana para o funcionário. E os
fósforos? Ninguém tinha.
Todos mal
vestidos, homens pobres e alguns com a própria roupa do trabalho, como aquele
menino cuja roupa no trabalho de ajudante de pedreiro era um calção.
O homem de
cabelos brancos, o funcionário público, olhava para o cigarro e murmurava
frases desconexas para dizer que ele aceitava que não tivesse cigarro, mas ter
cigarro e não ter fósforos era demais. Dava para estourar qualquer um.
- Fósforos?
Ninguém
tinha. Ninguém. Ele não aguentou, desesperou, gritou.
- Preciso só
de fósforos, o cigarro já arranjei. Isto não vai ficar assim, não pode
continuar assim.
E isto ele
dizia gritando. Os passos no corredor que sempre anunciavam a presença do
carcereiro ganhavam intensidade. O funcionário público calou. O silêncio voltou
dentro da cela, os passos eram firmes e na direção da cela. O funcionário olhou
para os quatro sentados em seu canto. Olhou para o moço da Escola de Samba,
como se o quisesse culpar por ter lhe dado o cigarro.
O pedreiro
falou com voz firme e pausada.
- Fique em
paz, companheiro. Sente aqui conosco.
E indicou um
lugar para o funcionário.
- Vejo que o
senhor é um sujeito distinto. O senhor acaso tem cigarro?
O bêbado
tentou murmurar estas palavras para não ser ouvido pelos outros três.
- Nem cigarros,
nem fósforos. Não fumo
O bêbado não
acreditou. De repente, tornou-se loquaz.
- Qual foi a maior invenção do mundo? Qual
foi a maior invenção do mundo? Hem? Foi a dos índios. Você sabe qual foi? Foi o
fogo. A maior invenção do mundo foi o fogo. Sabe qual foi a primeira cidade do
Brasil? Bahia e não São Salvador, não São Vicente. Salvador é o lugar das
macumbas e o lugar onde as macumbas dão certo. Lá tem os santos, o diabo, as
pimentas e as frutas. Gente boa. Ahahahahahahah!
Alguns
presos acreditam que é melhor estar na cela correcional porque tem chances de
sair e de alguma forma, de fato, esta possibilidade existe. Alguns imaginam o
que inventar para sair desta enrascada, outros acreditam que com um pouco de
imaginação e de malandragem conseguiriam se safar.
A verdade é
que os que ainda estão na correcional são os mais tensos. Vários são os fatores
que mantêm esta tensão, como, por exemplo, o desconhecimento de quem são as
outras quinze, vinte, pessoas que estão ali na cela com eles. O perigo de
existir ali um louco, a incerteza sobre a sua situação, será ou não será
mantido preso, isto sem considerar o que este sumiço poderá ocasionar no
trabalho, na família e nos negócios.
Na cela
ninguém tem cobertor. Nada que pudesse servir para forrar o chão de marmorite.
- O homem
que vem parar aqui tem que ser castigado. Ele deve alguma coisa. Aqui tem que
ser o inferno. Cidadão? Lei? Cidadão é o homem, E se o homem é criminoso, ou
suspeito, deixa de ser homem, deixa de ser cidadão e entra no pau porque não
pertence a raça humana.
- Agora,
pode anotar e um dia você escreve, a lei foi feita para barbarizar, a lei foi
feita para punir. E o que é punir? É bater, quebrar a pessoa. Suspeito - isto
não existe para nós. Ou é ou não é. Quem não é? A gente boa, os ricos. Quando
entra, mesmo que não seja suspeito, passará a ser.
O policial
indicou a flanela com gasolina e perguntou com ameaça e ironia.
- Você está
agora em nosso arquivos. Sabe lá o que é isso?
Chega um
novo preso. Ele está apavorado. Diz que trabalhou hoje como um desgraçado.
Encostou o carro em casa. Passou na padaria e comprou pão. Quando esperava a
carona de um amigo para ir à casa de um galho, a polícia o prendeu. O que ele
fizera? Era mecânico. O carro na porta de sua casa era do vizinho para quem
mandara a chave. O carro seria roubado? Não. Por que o prenderam? Sua roupa
estava suja de óleo, as mãos estavam inchadas e untadas de graxa.
Enquanto
falava suas mãos surgiam de repente, inchadas e doloridas, inchadas e sujas.
Tirou as sandálias e ficou descalço.
- Eu disse
para eles que eles podiam me matar, porque eu não vou falar nada. Não calo o
que eu não fiz. Não dá. Eu não vou dizer o que eu não sou. Nunca roubei em
minha vida.Nunca fui ladrão. Outra coisa, se eu tivesse roubado, também não
falaria, isto entre nós, porque eu não sou nenhum trouxa.
Somente na
hora da chamada soubemos que o seu nome era Tarcísio. Fora preso com a carteira
do trabalho e continua com ela no bolso.
O moço da
escola de samba do seu Arthur avisou-lhe que não era bom falarem naquele tom.
Tarcísio ficou apavorado quando lhe contaram o caso do homem de cabelos
brancos.
- Mas isto é
covardia!
Perguntou ao
cara da esquerda porque ele estava preso, se ele chegou hoje mesmo e se havia
muito tempo que estava na prisão. O cara sabia que Tarcísio não entenderia se
ele, por acaso, lhe dissesse a verdade, que estava preso há mais de 10 anos,
que não havia processo e que não havia nada, que ele vinha passando de uma
cadeia para outra. Considerando que poderia ser aceito como verdade por
Tarcísio, disse que estava preso a um ano e que estava ali de passagem.
- Um ano!
Tarcísio não
acreditou.
- É muito tempo.E o seu pessoal? E a sua
família?
A porta da
cela abre. O carcereiro olha para os que estão acordados e depois olha para o
menino como se olhasse para uma moça, fecha a porta de grades e entre os ferros
seus dentes brancos deixam escapar uma gargalhada recortada pela respiração de
asmático.
O menino
aproxima-se e fala de uma briga que aconteceu no bar da sua rua. Ele levou uma
garrafada na cabeça.
- Fiquei
tonto e não pude correr, por isso os homens me ganharam. Quando eu sair daqui,
vocês vão ver uma coisa, aquele filha da puta do dono do boteco ficará sabendo
o que é uma briga. Se antes a briga era com outras pessoas, desta vez será
comigo.
O menino fala. Quer ser o melhor e o mais
forte. Então, ele diz que os seus companheiros se acovardaram na hora do
bafafá. Que ele aguentou o pau sozinho. Fala, fala. Assume a valentia e se
torna valente dentro da cela. Ele entrara na cela com a calça molhada na mão.
De raiva e como prova de coragem, ele, que era valente, vestiu a calça.
Estranhou o silêncio dos outros presos e
quase tomou isto como prova de sua coragem e da covardia dos outros.
Falou, então, que a vida não lhe interessava.
Mudara a tática de defesa. Ele iria tentar mostrar que era um homem desapegado
à vida, portanto capaz de tudo.
Ah! Ele iria por para foder. Todos o
escutavam calados. Ele falava e andava de um lado para outro agitado.
No emprego, fala, vou encarar o meu patrão,
acabarei com aquela peste, cabeça gorda desgraçada de uma figa.
Rodou e voltou falar em suicídio.
- Quem tem uma gilete aí?
O trabalhador, vestido com um calção, acordou
e não compreendeu porque o menino queria suicidar.
- Para que você quer uma gilete?
- Vou morrer. Vou me acabar, morrer, cansei. Saco
cheio. Entendeu?
O menino foi deitar-se num canto. O
trabalhador de calção ficou olhando-o e depois foi dormir também. O trabalhador
fora preso por causa de uma briga com a mulher enciumada.
Chega mais um menino. O primeiro acorda e os
dois se põem a contar valentias. O negro da escola pergunta se amanhã com todos
acordados, eles conseguirão manter esse tipo de papo sem se complicarem. É
difícil saber dentre os que estão dormindo os que desafiarão os meninos.
Chega outro preso. Gordo e alto. É um dos
três que tem paletó. O gordo é alto, tem os dentes para fora e um sorriso
fácil. Lembra o Zé Adão, que, segundo o Milton, por causa dos dentes para fora,
o que é duro ao Zé Adão é não rir.
Não rir é impossível, o gordo não consegue
fechar a boca. O gordo está falando baixinho e ininteligível. Pedem para que
ele fale mais alto. Ele é dono, sócio de um bar e trabalha a noite.
- Dou tudo para a mulher. Trabalho de noite e
ela me fez uma safadeza. Eu a encontrei, flagrei os dois. Aí eu perguntei ao
sujeito, poxa cara por que você fez isto comigo? Ele respondeu qualquer coisa,
quis matá-lo. Pensei e me contive. Apenas o empurrei para que sumisse da minha
frente. O sujeito caiu, os óculos e o rote quebraram. A coisa ficou preta pra
mim, a cana me disse que aquilo é agressão.
O gordo encolheu as pernas, passou as mão no
rosto, a pele das suas mãos estavam cheias de hematomas, como se ele tivesse
esmurrado para valer uma parede.
- Eu sustento a mulher e o outro vai lá,
folgado, tranquilo, aproveitar a sopa, nadar na sopa, isto não. Ela é nova,
flor da idade. Eles vão me pagar. Eu mato e fujo. Esta é a primeira e última
vez que eu vou preso. Que mulher louca! Por que ela fez isso? Será por
dinheiro? Ela pensa que a juventude não acaba. Ironia, não é? Fomos presos os
três, eu, ele e ela. A polícia trouxe todo mundo. No final das contas, eu
fiquei. Os dois foram embora. Veja só, os dois, ele e ela anh!? Eu fiquei atrás
das grades. Os dois foram embora juntos. Que merda, não é? Hem?!
O gordo continuou no canto com as sua imagens
de amor traído e de ódio, a preparar sua vingança.
*
Duas eram as opções, ficar acordado e dormir
enquanto todos estivessem acordados, na manhã seguinte, em algum lugar que
batesse sol ou deitar no chão frio.
Duas pessoas apenas se mantinham acordadas. O
moço, que estava sentado na extrema esquerda dos quatro, passou a caminhar.
Esperava as badaladas de meia em meia hora. Cinco, seis, tossiam. Vez ou outra
conversavam o Gordo, Ernesto e Tarcísio. Os presos depois de terem dormido, no
máximo um quarto de hora, acordavam, como se tivessem combinado o momento exato.
Ernesto controlava a hora pelo relógio da Igreja da Lagoinha,
Dois, três levantavam, faziam um círculo e
conversavam ou continuavam a conversa anterior. Era mais um papo de cinco, dez
minutos e depois dormiam novamente.
Subitamente, do meio daqueles corpos mal
arrumados, uma pessoa erguia-se sonâmbulo para cair em outro lugar.
Outros mudavam de posição como se procurassem
um lugar macio ou quente no marmorite. Protegidos da luz que vinha do pátio e
garagem, nove dormiam debaixo do janelão de grades que ocupava toda a metade
superior da parede fronteira ao pátio. O vento praticamente não incomodava os
privilegiados que conseguiam um lugar debaixo da janela.
A porta abriu novamente, Ernesto era o único
que estava de pé. Entrou um preso sem camisa e descalço, trazendo um blusão nos
braços.
O carcereiro falou para o preso.
- Agora você vai tomar banho, ouviu?
Em seguida, o carcereiro fechou a porta acordando um bocado de gente.
De fora o carcereiro repetiu a ordem.
- Vá tomar banho, tem uma torneira aí.
O carcereiro dissera isto como mofa, gozação.
É uma característica da autoridade ser irônica no uso do poder. Tanto que
ninguém esperava o que o rapaz fez. O rapaz tirou a roupa, ficou nu, e procurou
a torneira. Tomou banho. Os meninos riam. O gordo ria. Tarcísio ria. Também no
rosto deste rapaz, que tomava banho, havia o medo e o pavor. Medo de que? Pavor
de que? Quem podia causar-lhe tanto medo? Os policiais? Os outros presos?
Aquela noite? Ou o que ele tivesse feito? Depois do banho, ele veio deitar-se
no chão. Disse que o carcereiro prometera conseguir-lhe uma cama se ele tomasse
banho.
- Tomei banho, cadê a cama?
Um dos meninos, o da calça molhada, bateu a
mão no chão.
- Olha aqui a cama, veja como ela é macia.
Veja, como a minha mão pula. Isto é um big colchão de mola.
- Colchão de Ortobom, bom para as costas.
- Este aqui é ótimo para a canga, no outro
dia a cangalha cai direitinho.
O rapaz que tomou banho não conseguiu dormir
o resto da madrugada. Ficou o tempo todo perto da porta, murmurava coisas
desencontradas.
- Minha tia está aí – e procurava uma melhor
posição para colocar o ouvido. Ela veio me tirar. Minha mãe não merece isto que
eu fiz. Tentaram me matar. Ele apontou a arma para mim. Eu avancei, não
acreditei e fiz uma loucura. Parti o cara. Foi fácil, não sei como, eu tomei a
arma dele e... não sei mais... não sei... minha tia.
Ouviu passos no corredor chamou por André.
- André?
Em seu rosto jovem e calmo, magro, nenhum
sinal de perturbação muscular, apenas os olhos que eram incrivelmente tranquilos
e otimistas, raramente apavorados.
Chamava por André, não obtinha resposta e
mais uma vez procurava captar os sons do corredor.
O dia começou a clarear. As luzes da cadeia
ainda estavam acesas.
Chegou um outro, este trazia uma nota de
culpa, auto de flagrante. Processado no artigo 115 do Código Penal. Negro,
maltrapilho, um enorme sapato de bico fino, blusa e camisa verde, jeito de velho,
olhar manso e calmo. Parecia com uma pessoa conhecida. O negro meio corcunda
era um rapaz ainda novo, entre vinte e vinte e cinco anos, calado e humilde.
Veio para a cadeia, preso em flagrante, tentativa de homicídio, esfaqueou um.
- Como ficou o sujeito?
- Me disseram que o cabra está fecha não
fecha.
- Deve ser mentira Eles querem te apavorar,
certamente.
O negro de sapato de bico fino mostrava a
nota de culpa e enquanto os outros liam, ele observava as contrações faciais
daqueles que liam.
- Este negro me lembra um amigo, disse
Ernesto. Lembra-me o Elson, um velho amigo, que ficou perdido no norte, um
pouco acima do rio Amazonas, numa daquelas bacias secundárias.
Esse negro do artigo 115 não sabe ler, mas
percebe muitas coisas, percebe muito mais do que a leitura poderia lhe
proporcionar. Ele lê no comportamento dos outros, nas reações, ele lê através
do entendimento dos outros. Será impossível enganá-lo se o Gordo quiser mentir
ou diminuir o significado de uma nota de culpa da prisão em flagrante.
A manhã se completava, os sons chegavam Apagaram
a luz.
*
Durante a noite, um moço alto, forte, com
fisionomia agastada, traços harmoniosos, levantou-se uma porção de vezes para
ir ao banheiro. Antes da chamada, quando todos os presos estavam de pé dispostos conforme as exigências dos
carcereiros, perguntei-lhe o que houve.
Seu nome é Lourenço, cearense, garçom em São
Paulo. Veio a Minas para a inauguração de um restaurante.
- Eu não queria vir, mas sou um curioso, um
xereta. Quis aproveitar a oportunidade de conhecer Belo Horizonte ganhando
também algum. O dono do restaurante quando esteve em São Paulo me contratou sob
palavra. Era só chegar e teria trabalho
para mim.
Seu azar foi que ao deixar sua pasta James
Bond em um canto do restaurante, para esperar o proprietário, roubaram-lhe
todos os documentos e mais 250 cruzeiros. Contrariado pelo barulho que Lourenço
aprontava, o dono do restaurante chamou a polícia. Em suas investigações a
polícia desconfiou de Lourenço.
Tudo começou com uma gozação. Eis uma
espécime rara de cearense, um cearense sem cabeça chata! Dissera um
investigador. Daí para a dúvida quanto a naturalidade e quanto a honestidade de
Lourenço.
Um cearense que não tem cabeça chata, que não
é pequeno, desaforado, aí a polícia começou a raciocinar. As premissas e os
indícios que sempre acompanham o raciocínio da polícia são sempre iguais a
estes. Lourenço tornou-se um suspeito.
Em pouco tempo já o consideravam um ladrão.
Assim o penderam. Era ladrão e se não fosse ladrão não seria cearense. Havia
alguma coisa atrás daquela identidade ocultada, pois para a polícia já era
pacífico que Lourenço não era cearense.
- Tem linguiça e muito caroço nesse angu – dissera o investigador
ao dono do restaurante para justificar porque eles levavam Lourenço.
Lourenço tinha pescoço e um polícia chegou a se referir a um
exemplar de cearense citando um presidente militar do país. Outro policial se
referiu à maneira como o presidente dava nó na gravata todas as manhãs.
Levaram Lourenço para a Delegacia de Furtos e Roubos, antes de
chegar a resposta pelo telex sobre a identidade de Lourenço o pau já havia
começado. Veio a resposta, os policiais ficaram embasbacados, Lourenço era de
fato cearense e do sertão. E agora? Se é cearense passará a ser ladrão e assim
começaram os interrogatórios infalíveis.
Um policial se adiantou para Lourenço.
-
Você vai ter que explicar tudinho para a gente, como conseguiu
aquelas duas malas de roupa.
-
Onde você roubou aquelas roupas? Gritou outro policial.
-
O que você está fazendo que ainda não tirou a roupa. Fique nu.
Daqui a pouco nosso papo vai esquentar.
Lourenço não entendia nada
daquilo. Esses homens ficaram loucos.
- Tire a roupa logo.
-Olhem só o tamanho do pintinho
dele.
- Coitadinho.Isto não faz mal a
ninguém.
-Agora nunca mais ele vai poder
tirar uma, nós vamos esbagaçar isto.
- Anda filho da puta, vai dizendo
onde você roubou.
- Roubei o que?
- Você é um ladrão refinado.Não
vai querer falar, hem?
- Cearense em São Paulo só se dá bem
por isso: roubam.
Aproximou um policial e propôs um
acordo com Lourenço. Ele falava. Não haveria processo, as coisas seriam
distribuídas com a os policiais amigos.Tudo ficaria limpo. Quem sabe se ele não
iria poder ficar aqui em Belo Horizonte. O campo era promissor para gente
inteligente como ele.
Lourenço falou que ele poderia
até roubar mas que de fato não havia roubado até então.
O policial se afastou, apanhou
uma borracha de pneu de caminhão.
Lourenço acordou na cela, não
podia virar o corpo. Tentou tirar a mão que estava presa dormente sob o corpo e não conseguiu.
Todos os seus movimentos eram
dolorosos. Estava nu. Quantos chutes levou na cabeça? Não se lembra. E se os
chutes o deixassem maluco? Pensando, ele estava. Que sujeito covarde aquele! O
pinta segurava a cabeça de Lourenço e enchia de tapas. Quantos eram? Contara
cinco, mas deviam ser mais, vinha mão, perna, braço e pé de tudo quanto era
lado.
Não havia dúvida, aquilo era
muita covardia. Se ele saísse, se ficasse inútil, iria atrás de um por um,
pegar um por um e fazer as sacanagens mais violentas possíveis, seria cruel,
mataria todos depois de muita monstruosidade.
Ele teria coragem para isso.? Não
sei. Mas como a polícia tem? Lourenço não sentia o pênis, seu ânus parecia ter
sido queimado por cigarros.
Abriram a porta, Lourenço viu
entrar o carcereiro que falava com voz branda, dizia que ele, como homem e como
polícia, condenava aquele comportamento dos policiais daquele plantão. O
carcereiro aplicou-lhe uma injeção e deixou dois analgésicos para Lourenço.
Dois dias depois de estar
totalmente recuperado, mandaram-no embora.
Lourenço pediu suas malas.
- Malas?!
O carcereiro olhou para Lourenço
não acreditando no que ouvia.
-
Exatamente, as malas, as minhas malas, as minhas roupas.
O policial passou as mãos no
cabelo. Inacreditável! O moço ganhando uma boca daquelas de escapar sem
processo, ao invés de ir embora, estava procurando complicações com a polícia.
Lourenço viu chegar dois policiais vestidos com as suas roupas.
-
Senhor, aquelas duas malas me pertencem, eu quero as minhas malas,
vou falar com o delegado.
-
O delegado não está, só chega mais tarde e, mais ainda, não
sabemos a hora em que ele chega. Principalmente quando acontece como agora que
ele saiu para uma diligência.
O carcereiro ficou calado, depois
voltou-se para Lourenço.
-
Rapaz, eu quero ser seu amigo, sou um policial velho, que está
aqui neste posto porque não quer se envolver com histórias sujas, e elas há,
dez, vinte por dia. Tenho mais de vinte anos vendo covardias, é um conselho que
eu te dou, vá embora. Não há para quem apelar. As outras autoridades são piores
do que estas, são mais sutis. Esqueça as malas, esqueça as roupas. Você é um
moço trabalhador, conseguirá outras.
-
Até logo.
-
Isto meu rapaz, vá embora, vá com Deus.
Na Secretaria de Segurança do
Estado, Lourenço contou toda a sua história, pediu um exame de corpo delito no
Instituto Médico Legal. O delegado, fumando um cigarro atrás de outro, ouviu
toda a historia de Lourenço.
Os únicos movimentos do delegado
eram em torno do cigarro e para jogar as cinzas em qualquer lugar, para acender
um novo cigarro, para soprar um jato de fumaça para o alto, para apertar a
bagana no cinzeiro.
Garantiu a Lourenço que suas
coisas seriam recuperadas, falou dos propósitos de moralização e do sentido de
colaboração que aquele depoimento trazia. Lourenço receberia peça por peça. Era
uma quarta-feira, de manhã quando fora solto pela Delegacia de Furtos e Roubos.
Saiu da Secretaria de Segurança e
entrou no bar mais próximo, não tinha nada no bolso, nem dinheiro, nem
documentos, pensou o que deveria fazer, voltar ao restaurante. Nunca voltaria
naquele restaurante, iria para São Paulo. Como? A garçonete colocou uma xícara
de café diante dele.
-
Não quero nada não, moça. Muito obrigado.
- Se não quer nada, faça o favor de se
retirar. Aqui não é lugar de descanso.
Saindo da Secretaria, Lourenço
lembra dos modos do delegado, ele não confiou naquele delegado. Com fome,
tentou inutilmente se concentrar para ter uma ideia de como conseguir comida e
tomou uma decisão, sair imediatamente desta cidade, de qualquer jeito, de
carona, a pé, enfim sair.
Uma radiopatrulha encostou.
-
Seus documentos por favor?
Ele não esboçou nenhuma
explicação. Sorriu e se conformou com a sorte. Veio a imagem da fumaceira no
gabinete do delegado na Secretaria e repetiu, dentro do camburão, as palavras
da autoridade.
-
Inegavelmente, inegavelmente, tais fatos são absurdos. A corrupção
da nossa polícia nos entristece.
E o delegado amassava a bagana.
Conduzido direto ao Departamento
de Investigações foi colocado à disposição da Vadiagem. Passou a ser mais um
desesperado, embora calmo, não ameaçando revide, falando pouco, não se
referindo aos policiais com intenções assassinas, apenas tinha um riso até a
metade.
-
Não vou matar ninguém, não vou tornar-me um criminoso, que esta
seja a última vez, a primeira e a última vez que venho a Belo Horizonte. Juro
que nunca mais volto. Foi tudo um grande azar. Todos estamos sujeitos a isso,
todos nós que deixamos os nossos familiares e viemos para a cidade grande, todos nós que somos pobres,
todos nós que lutamos e trabalhamos duro.
Lourenço apontava os outros
companheiros de cela.
-
Aqui, sim, entra tudo quanto é espécie de pessoas ladrões e
bêbados, vagabundos, assassinos, tarados, maconheiros, inocentes, estúpidos,
loucos e os que estão enlouquecendo.
Aquelas pessoas sujas causavam
repugnância a Lourenço, que se afastava
de todo mundo. Ele não escondia isso para ninguém. Um sujeito veio conversar
com Lourenço, falava alto sobre a sua prisão, quando o sujeito topou com o riso
de desinteresse de Lourenço. Metade de
uma palavra o cara engoliu e saiu sem muita conversa. Este corte rápido da
palavra encerrando a conversa, foi
presenciado por todos. Todos olhavam para os dois esperando para ver o que ia
dar. O sujeito teve medo, afastou-se sem virar as costas para Lourenço e
procurou um lugar para sentar, batendo com as costas na parede e deixando a
perna sobre as coxas de um rapaz.
O rapaz passou as mãos na perna
do sujeito e disse.
- Moço, suas pernas são macias.
- Todos trazem doenças, continuava Lourenço, sujeiras e parasitas,
muquiranas, chato. Isto é uma pocilga abandonada.
Lourenço enfiou as mãos no bolso e ficou
caminhando para lá e para cá, indiferente ao homem que humilhara.
O
gordo queria saber quantos dias de prisão dava o artigo 115, prisão em
flagrante. Ninguém sabia. O gordo mesmo respondeu.
-
O artigo 115 deve dar 115 dias de cadeia. Artigo 115, 115 dias. Mas se alguém
fizer alguma coisa, a gente pode sair antes. Ninguém sabe da minha prisão,
ninguém da minha família. Amanhã, aliás, hoje mesmo, meu sócio ficará sabendo e vem para
cá. Ele me tira da prisão.
Os
cigarros que apareciam eram distribuídos igualmente entre todos os fumantes.
Nunca acendiam dois cigarros ao mesmo tempo. Era sempre um e este rodava por
toda a cela. As baganas rolavam de boca em boca, pela boca de umas vinte
pessoas, que a fumavam até queimarem os dedos e os lábios.
Um nordestino queixava-se da possibilidade de
ter que passar o natal na cadeia. Seu nome era Ribamar, usava uma japona,
dizia-se descendente de índios, tinha o rosto marcado por bexigas e talhes de
navalha. Sua voz era forte. Era do Maranhão, deu o nome de sua cidade e dos
seus avós índios. O rádio em uma casa comercial da Lagoinha, ligado a todo
volume, tocava um samba de Martinho da Vila.
-
Martinho da Vila é malandro, ele sabe viver – disse Ribamar.
Ernesto e o descendente dos
índios bateram um papo na porta da cela. Ernesto vivera em Cerrito, em
Montevidéu, e Ribamar já roubara em Pocito.
Qual foi o seu caso, perguntou
Ribamar.
-
Morte.
-
Empreitada?
-
Também mato por empreitada, este agora foi vingança.
-
Por quê?
-
Os caras queriam abusar de minha mulher, numa casa de mulheres.
-
Era bonita?
-
Não.
-
Estou numa fria, disse Ribamar, a Polinter mandou que me
segurassem, agora nem que o diabo nasça estes desgraçados me soltam. Ouvi um
zumzum, parece que é qualquer coisa lá fora. Em Buenos Aires, andei metendo a
mão demais por lá, fiz limpeza adoidado. Interessante é que não deixei rabo,
fiz tudo na limpeza e me surge esta. Acho que tudo não passa de uma sugesta, se
colar eu me perco e entro na fria. A coisa é um jogo. Vai ver os caras pescaram
no voo e querem pegar a fruta de qualquer jeito. Eles estão enganados, conheço
as manhas. O negócio é não bolinar as ideias, aceitar o natal na cadeia, sem
mulheres, roer sonhos. Manjo este povo.
O carcereiro chegou até a porta
do xadrez, bateu com uma vara de ferro contra as grades.
-
Atenção, todos encostem na parede. Vai começar a chamada.
8.5.2
31.5.02
A caminho de Neves
Uma nova
temporada começaria em que tínhamos algumas certeza. A primeira seria a
recuperação física com tratamentos programados no Hospital das Clínicas da UFMG. Logo fui
alojado em uma das celas da enfermaria. Éramos os primeiros presos políticos
transferidos de Linhares para a Penitenciária Agrícola de Neves.
Lá já estava
Márcio Lacerda, o Gringo.
A segunda
certeza, teríamos acesso a uma biblioteca e uma boa surpresa. A biblioteca
abandonada, era, entretanto, dotada de um grande acerco e de muitos bons livros.
Trabalhando
na área de saúde da penitenciária, haveria espaço para nossos estudos e tempo
para leitura.
Trabalhávamos
na farmácia, onde predominava a manipulação de medicamentos, sob a orientação
do farmacêutico formado ela UFMG, seu Machado.
Os outros
dois presos políticos eram oriundos da Polícia Militar e ficaram isolados do
nosso convívio.
O Dia
Anterior
“Ainda o pensamento criminoso de um malfeitor possui mais grandeza
e nobreza do que os prodígios dos céus”.
Hegel
O homem sem destino
1ª. Parte
A missão da
escolta: matar o prisioneiro
A missão
oficial dos policiais era transportar o preso da penitenciária de Linhares para
a Penitenciária Agrícola de Neves. A verdadeira missão: no caminho, o preso
seria executado.
Simples, uma
tentativa de fuga e a execução.
Ao receber o
preso em Linhares, Juiz de Fora, os policiais se assustaram.
Como um
preso que mal conseguia andar teria condições de tentar uma fuga?
Nos 375
quilômetros de Linhares a Neves, as dúvidas começaram na recepção do preso.
Andrade, o
policial mais velho, a seis meses da aposentadoria, quis recusar continuar
aquela operação.
“Vamos
levá-lo, no caminho encontraremos uma solução”.
A opinião do
outro policial prevaleceu, a própria Penitenciária de Linhares se recusava a
aceitar o preso de volta diante da documentação que autorizava a transferência.
Consideraram
que diante da documentação recebida, o preso já estava entregue àquela escolta
e que não era mais um preso político da Penitenciária de Linhares.
Algemado, no
banco de trás, o preso percebe a tensão dos policiais. No volante, Andrade quer
discutir, imediatamente, uma solução.
- Vamos
abastecer. Vou trazer um café para você.
Os dois
policiais conversam. Olham para o carro. Fazem gestos. Eles não se entendem.
O preso
recebe o café.
Depois de
duas outras paradas, os policiais decidem conversar dentro do carro.
- Nós não
podemos errar.
- O que
faremos, então?
- Não sei
ainda, sei apenas que não dá para fazer nada. Colocaram a gente numa fria.
- Uma fria, não.
Numa sinuca. Não quero responder a um processo administrativo, muito menos ser
responsável por um crime.
A discussão
corria sem que dissessem claramente que tinham dúvidas se executavam ou não o
prisioneiro.
A simulação
da fuga estava afastada. Sabiam que responderiam por um assassinato.
“Não se
preocupem com ele, ele não tem pernas para andar, muito menos correr. É quase
um aleijado. Nem precisam colocar algemas a não ser para evitar uma tentativa
de provocar um acidente”.
Fora a
observação dos militares ainda em Linhares, Juiz de Fora.
Andrade
repetia e sinalizava que nesta fala havia, para ele, o descarte da proposta da
fuga e da execução. Mais grave ainda, os próprios militares de Linhares
poderiam depor e incriminá-los como assassinos.
O outro
policial ainda insistia em cumprir a missão.
- Recebemos
50%. Não vamos receber o restante? Temos que pensar uma saída.
- Entramos
numa fria, meu chapa.
Nas mãos,
eles tinham a vida e o destino de um homem.
Decidem
seguir para Ribeirão das Neves e entregar o preso na Penitenciária Agrícola de
Neves.
Lá, acontece
o inesperado. A direção da Penitenciária recusa receber o preso. O susto dos
dois policiais da escolta surpreende os policiais na portaria da penitenciária.
Não podiam aceitá-lo porque, simplesmente, não havia nenhuma autorização para
receber ninguém. Eles percebem que a expectativa das autoridades era que o
preso já tivesse sido executado no trajeto de Juiz de Fora a Neves.
- Não vamos
cair nesta arapuca. Vamos direto para Belo Horizonte, vamos jogar o preso no
Depósito de Presos da Lagoinha.
- Como,
faremos isto, Andrade?
- Não
diremos nada sobre a escolta nem sobre o transporte de Juiz de Fora a Neves,
deixaremos o preso na Lagoinha. Amanhã, no boletim de ocorrência, afirmaremos
que é um preso em trânsito para a Penitenciária. Vamos aguardar a decisão da Secretaria de Segurança e do
Exército. Ele é um condenado pela Lei de Segurança Nacional. Não decidindo
nada, nós avisaremos que estamos voltando para Linhares, em Juiz de Fora.
2ª. Parte
O registro detalhado desta noite no Depósito de Presos do
Departamento de Investigações da Secretaria de Segurança do Estado de Minas
Gerais serviria apenas para lembrá-lo do dia anterior. Sobre o dia anterior ele
somente poderia escrever quando tivesse total segurança. Décadas depois, P escreveu sobre este que está aí O
Dia Anterior.
Esta é a Noite ou o Dia Seguinte
A partir deste momento, a história será
diferente. A história é outra
Um depósito
de gente
Muitos são
os personagens desta noite, eles vieram de muitos lugares – desceram os morros,
saíram de dentro de oficinas, de uma rua estreita e mal cheirosa, de lugares
mal afamados, eles saíram de bares, dos lugares da cidade onde os homens de
bem, as pessoas de bem, são desconhecidos.
Cirilo é um
personagem. Outros são Lourenço, um nortista cujo tragédia era não ter a cabeça
chata, o Louco e o Garçom Ribamar, o Ladrão, Baiano, o Assaltante e Tarcísio. E
o Traficante.
Existem mais
outros.
O cenário
onde se desenrola quase toda a ação descrita é a Cela 3 do Depósito de Presos
da Lagoinha, em Belo Horizonte.
O tempo de
duração desta noite vai das 23 horas às 11 horas da manhã.
Primeira cena: Ritual da Revista.
Duas
mocinhas, uma grávida, estão na fila. A fila era longa, seriam uns quinze
homens e mulheres, esperam a vez de passarem pelas mãos dos prontidões,
deveriam dar o nome e os demais dados de identificação para em seguida tirarem
toda a roupa.
Nus, um de
cada vez, eram encostados em uma parede, primeiro de frente para os policiais,
depois de costas, abaixavam, abriam as pernas, os braços e a boca.
Apesar de
toda esta vigilância e este rigor das revistas, a maconha, que era uma das
drogas mais combatidas pela polícia, era comerciada dentro do Depósito e havia
fartura para os fumante de jereré.
“Tranquilizamos os presos e a cadeia vai sem dor”.
A menina grávida apertava, angustiada, a mão da outra menina. Ela
via lá na frente homens e mulheres sendo despidos. Homens e mulheres obedecem
às ordens de quatro policiais: tirem a roupa, levantem os braços, abram a boca,
abram as pernas, virem (esse já está acostumado, diz um policial com as mão nas
nádegas do preso), abaixem, pulem como sapo, pulem como sapo, como sapo.
A menina tremia, suas lágrimas não tinham controle. Nem as
lágrimas e o pavor de um outro preso, um rapazinho miudinho, que não conseguiu
controlar a tremedeira também. Ele rodava na fila. Falava, falava baixinho,
falava alto, explicava, não era um igual a todos aqueles ali, "não era bandido
e estava ali, vexame, algo terrível, meu Deus, o que ia acontecer."
Ninguém parecia ouvi-lo.
Ele espichava os olhos para a porta de aço que havia jogado-o ali
no corredor e na fila.
Lá atrás estaria a sua última esperança, um detetive igual a ele,
mirrado e de carranca, mas um homem que ele acreditava que conhecia e que não
podia, não conseguiu identificar, localizar nem na rua e nem na cabeça.
Agora era o corredor e a fila. O corredor servindo de acesso
direto dos camburões aos xadrezes e de saída estratégica, muitas vezes, para a
polícia.
Na fila, a espera do ritual da revista. O som de fundo era um jogo
da nossa seleção em busca da glória do mundo.
A fila obedece ao ritmo inverso do futebol, anda quando o jogo
para. Por causa, talvez, do jogo, há um pouco de descontração entre os
policiais, assim na revista de uma mulher, as brincadeiras não acabam. Levantam
os seios para ver se não havia nada escondido, simulam um relacionamento,
simulam uma curra.
- Vejam como ela é lisa, pena é esse talho de navalha na barriga.
Vejam como é liso.
O cassetete percorre os braços dela e fica firme em cima do talho.
A televisão chama todo mundo. Há uma grande chance de gol.
O rapazinho miúdo quer se explicar. Tem na mão um remédio e uma
receita.
- Gente, eu tenho que tomar este remédio. É uma injeção contra
tétano. Antitetânica. Eu não briguei. Eu não bati em ninguém. Vejam, eu até
apanhei.
Ele consegue se aproximar de um policial. Já é o primeiro da fila.
- Cheguei no bar para beber. Faço todos os dias. É a verdade.
Dentro do bar, começou a briga. Não consegui sair e procure me defender.
-Só?
Ele calou. Certamente não acreditavam no que ouvia. Escutaram o
que ele falou. Pior ainda, responderam. Pior, duvidaram da sua verdade.
-Só? É só mesmo, seu filho da puta, fale de uma vez, sem piscar,
nome, endereço, onde foi preso e porque. Desembucha e rápido.
-Não sei porque fui preso. Eu desmaiei. Foi porque eu desmaiei e
me levaram para o hospital. Foi porque me levaram para o hospital, porque eu
não tinha dinheiro para pagar a vacina antitetânica.
-
Nome, endereço, local do evento...
-
Tire a roupa.
-
Levante os braços.
-
Encostes na parede.
-
Abra as pernas.
-
Abra as pernas.
-
Ande, abra as pernas.
-
Ande, filho da puta, abra as pernas!
Gritou o
policial velho e franzino.
Na sua
frente estava o preto da Escola de Samba Unidos do Seu Arthur, em homenagem ao
próprio seu Arthur lá do morro, um português velho e besta, que sempre que
podia deixava a turma do futebol, que era a mesma da Escola, beber sem pagar. Isto
quando o portuga também estava numa boa.
Era a hora
em que a turma da Escola de Samba escutava o portuga falar dos seus sonhos, dos
seus romances, das suas entradas noturnas em casas de senhoras respeitáveis,
dos seus medos de assombrações e dos seus passados que não se repetiam para
finalizar contado a história do grande desfile da Escola de Samba que levava
sempre o seu nome para as ruas.
Logo atrás
entra um moço pequeno e magro. Seus movimentos rápidos e secos davam o ritmo para
as suas explicações. De uma forma ou de outra procurava convencer os policiais,
todo mundo, se possível enganar a todos, para se safar dali. Ele tinha medo de
cadeia. Tinha medo do ambiente da cadeia e do que a cadeia podia lhe fazer.
Este pequeno moço é inquieto, tinha entradas avantajadas, cabelos lisos e
untados de vaselina.
Havia em seu
rosto medo e pavor. Em seu rosto o pavor se desenhava com traços mais nítidos
do que o pavor inocente das crianças famintas, o pavor das crianças famintas
não está em seus rostos, mas na consciência que temos da inanição e do perigo
para a vida de uma criança a falta de alimentos. O moço magro trazia em sua mão
uma receita e no braço um curativo. Em seu corpo havia rastro de sangue e mertiolate.
Ele estende a receita para o prontidão.
"Tenho
que tomar este remédio. É contra tétano. Antitetânico. Briguei com seis, não
apanhei, não entreguei ninguém e quem acabou preso? Eu."
Toda a briga
foi descrita para o policial de plantão. Este, enquanto fazia as anotações do plantão,
assistia a um jogo de futebol transmitido pela televisão diretamente do Rio. O
pequeno sujo de sangue e mertiolate, falando para o policial, tentava,
inutilmente, atrair a atenção das outras pessoas por perto. Nem os presos e nem
os eventuais policiais que saíam de suas repartições para ver o jogo conseguiam
se interessar ou ouvir o que dizia o pequeno. Policiais passavam com as mãos
cansadas e com alguns apetrechos de tortura, máquinas, as chamadas maquininhas,
pedaços de fios, paus, latas e pedaços de borrachas. Nesta época o choque
elétrico e a palmatória, assim como o pau de arara e o afogamento eram as
torturas mais comuns.
Encerrado o
ritual da revista, todos os presos registrados pelo plantão são remetidos para
a cela três.
O policial
iria fazer agora a ficha de uma das mocinhas.
- Qual o seu
nome?
Perguntou o
policial, enquanto comentava o lance do jogo que ocasionara um gol. Segundo a
opinião do policial de plantão e responsável pela televisão ligada, opinião que
todos os outros escutaram com aprovação, o atacante nunca mais repetiria a
atuação da copa de 70.
O policial
levantou a cabeça indagando com um gesto. Ela respondeu
–
Maria Lúcia
de Souza
–
Maria Lúcia
de Souza, repetiu o policial. Tem documentos?
Depois de um instante, voltou a olhar novamente a menina,
conferenciou com outro policial que tomava café, pelando, numa xícara de
alumínio e que, por isso mesmo, passava a xícara de uma mão para outra. Depois
nos disseram que ele tinha mania de tomar café daquela maneira.
- Olha, senhorita Maria Lúcia de
Souza, presta bastante atenção na chamada. Tem outra Maria Lúcia de Souza lá
dentro. A partir de agora seu nome será outro. Você se chamará Maria Lúcia de
Souza Segunda.
O policial acendeu o cigarro e disse para a menina que, dentro em
pouco ela conheceria a outra Maria Lúcia.
Na cela três
Quando chegamos, 14 pessoas estavam estendidas no
chão e fazia frio, já era quase meia noite. Os quatro que entraram agora
reuniram-se para conversar. Ninguém estava interessado em saber o nome de
ninguém, todos queriam saber o que cada um havia feito para estar ali.
Um senhor de cabelos brancos, magro, bêbado, como um maluco pede e
procura por um cigarro.
- Um cigarro? Pede.
- Um cigarro, quem tem um cigarro? Bagana? Qualquer coisa? Pó,
poeira.
- Por favor, você tem um cigarro? Ninguém tem?
Nenhum dos
quatro recém-chegados responde. Ninguém entendia o desespero daquele homem. Estranharam que a
única preocupação daquele homem fosse o cigarro.
O homem
girou por toda a cela, passou por cima de todos e voltou.
- Eu sou da
polícia, eles não sabem com quem estão mexendo. Amanhã eles verão.
- Eu sou eu.
Estes documentos mostram quem eu sou. Sou um funcionário público, alto
funcionário. Trabalho no Estado há tanto tempo que até já esqueci da minha
mulher. Esqueci que eu tinha uma mulher e que eu tinha filhos. Perdi tudo,
perdi a vergonha. Agora estes bundas sujas fazem isto comigo. Eles me pagam.
Você tem um cigarro? Por favor.
Agora
aparece o carcereiro que bate na porta.
- Silêncio,
o meu, senão tem pau.
Não se ouvia
nenhum som. O policial ainda fez hora na porta. Olhou paras as grades da janela
e saiu. Novamente, o bêbado quebrou o silêncio numa tentativa de ironizar a
situação.
- Pau?
Riu.
- Nem mole,
nem duro, de jeito nenhum.
O rapaz da
escola da samba mostrou um cigarro e uma bagana para o funcionário. E os
fósforos? Ninguém tinha.
Todos mal
vestidos, homens pobres e alguns com a própria roupa do trabalho, como aquele
menino cuja roupa no trabalho de ajudante de pedreiro era um calção.
O homem de
cabelos brancos, o funcionário público, olhava para o cigarro e murmurava
frases desconexas para dizer que ele aceitava que não tivesse cigarro, mas ter
cigarro e não ter fósforos era demais. Dava para estourar qualquer um.
- Fósforos?
Ninguém
tinha. Ninguém. Ele não aguentou, desesperou, gritou.
- Preciso só
de fósforos, o cigarro já arranjei. Isto não vai ficar assim, não pode
continuar assim.
E isto ele
dizia gritando. Os passos no corredor que sempre anunciavam a presença do
carcereiro ganhavam intensidade. O funcionário público calou. O silêncio voltou
dentro da cela, os passos eram firmes e na direção da cela. O funcionário olhou
para os quatro sentados em seu canto. Olhou para o moço da Escola de Samba,
como se o quisesse culpar por ter lhe dado o cigarro.
O pedreiro
falou com voz firme e pausada.
- Fique em
paz, companheiro. Sente aqui conosco.
E indicou um
lugar para o funcionário.
- Vejo que o
senhor é um sujeito distinto. O senhor acaso tem cigarro?
O bêbado
tentou murmurar estas palavras para não ser ouvido pelos outros três.
- Nem cigarros,
nem fósforos. Não fumo
O bêbado não
acreditou. De repente, tornou-se loquaz.
- Qual foi a maior invenção do mundo? Qual
foi a maior invenção do mundo? Hem? Foi a dos índios. Você sabe qual foi? Foi o
fogo. A maior invenção do mundo foi o fogo. Sabe qual foi a primeira cidade do
Brasil? Bahia e não São Salvador, não São Vicente. Salvador é o lugar das
macumbas e o lugar onde as macumbas dão certo. Lá tem os santos, o diabo, as
pimentas e as frutas. Gente boa. Ahahahahahahah!
Alguns
presos acreditam que é melhor estar na cela correcional porque tem chances de
sair e de alguma forma, de fato, esta possibilidade existe. Alguns imaginam o
que inventar para sair desta enrascada, outros acreditam que com um pouco de
imaginação e de malandragem conseguiriam se safar.
A verdade é
que os que ainda estão na correcional são os mais tensos. Vários são os fatores
que mantêm esta tensão, como, por exemplo, o desconhecimento de quem são as
outras quinze, vinte, pessoas que estão ali na cela com eles. O perigo de
existir ali um louco, a incerteza sobre a sua situação, será ou não será
mantido preso, isto sem considerar o que este sumiço poderá ocasionar no
trabalho, na família e nos negócios.
Na cela
ninguém tem cobertor. Nada que pudesse servir para forrar o chão de marmorite.
- O homem
que vem parar aqui tem que ser castigado. Ele deve alguma coisa. Aqui tem que
ser o inferno. Cidadão? Lei? Cidadão é o homem, E se o homem é criminoso, ou
suspeito, deixa de ser homem, deixa de ser cidadão e entra no pau porque não
pertence a raça humana.
- Agora,
pode anotar e um dia você escreve, a lei foi feita para barbarizar, a lei foi
feita para punir. E o que é punir? É bater, quebrar a pessoa. Suspeito - isto
não existe para nós. Ou é ou não é. Quem não é? A gente boa, os ricos. Quando
entra, mesmo que não seja suspeito, passará a ser.
O policial
indicou a flanela com gasolina e perguntou com ameaça e ironia.
- Você está
agora em nosso arquivos. Sabe lá o que é isso?
Chega um
novo preso. Ele está apavorado. Diz que trabalhou hoje como um desgraçado.
Encostou o carro em casa. Passou na padaria e comprou pão. Quando esperava a
carona de um amigo para ir à casa de um galho, a polícia o prendeu. O que ele
fizera? Era mecânico. O carro na porta de sua casa era do vizinho para quem
mandara a chave. O carro seria roubado? Não. Por que o prenderam? Sua roupa
estava suja de óleo, as mãos estavam inchadas e untadas de graxa.
Enquanto
falava suas mãos surgiam de repente, inchadas e doloridas, inchadas e sujas.
Tirou as sandálias e ficou descalço.
- Eu disse
para eles que eles podiam me matar, porque eu não vou falar nada. Não calo o
que eu não fiz. Não dá. Eu não vou dizer o que eu não sou. Nunca roubei em
minha vida.Nunca fui ladrão. Outra coisa, se eu tivesse roubado, também não
falaria, isto entre nós, porque eu não sou nenhum trouxa.
Somente na
hora da chamada soubemos que o seu nome era Tarcísio. Fora preso com a carteira
do trabalho e continua com ela no bolso.
O moço da
escola de samba do seu Arthur avisou-lhe que não era bom falarem naquele tom.
Tarcísio ficou apavorado quando lhe contaram o caso do homem de cabelos
brancos.
- Mas isto é
covardia!
Perguntou ao
cara da esquerda porque ele estava preso, se ele chegou hoje mesmo e se havia
muito tempo que estava na prisão. O cara sabia que Tarcísio não entenderia se
ele, por acaso, lhe dissesse a verdade, que estava preso há mais de 10 anos,
que não havia processo e que não havia nada, que ele vinha passando de uma
cadeia para outra. Considerando que poderia ser aceito como verdade por
Tarcísio, disse que estava preso a um ano e que estava ali de passagem.
- Um ano!
Tarcísio não
acreditou.
- É muito tempo.E o seu pessoal? E a sua
família?
A porta da
cela abre. O carcereiro olha para os que estão acordados e depois olha para o
menino como se olhasse para uma moça, fecha a porta de grades e entre os ferros
seus dentes brancos deixam escapar uma gargalhada recortada pela respiração de
asmático.
O menino
aproxima-se e fala de uma briga que aconteceu no bar da sua rua. Ele levou uma
garrafada na cabeça.
- Fiquei
tonto e não pude correr, por isso os homens me ganharam. Quando eu sair daqui,
vocês vão ver uma coisa, aquele filha da puta do dono do boteco ficará sabendo
o que é uma briga. Se antes a briga era com outras pessoas, desta vez será
comigo.
O menino fala. Quer ser o melhor e o mais
forte. Então, ele diz que os seus companheiros se acovardaram na hora do
bafafá. Que ele aguentou o pau sozinho. Fala, fala. Assume a valentia e se
torna valente dentro da cela. Ele entrara na cela com a calça molhada na mão.
De raiva e como prova de coragem, ele, que era valente, vestiu a calça.
Estranhou o silêncio dos outros presos e
quase tomou isto como prova de sua coragem e da covardia dos outros.
Falou, então, que a vida não lhe interessava.
Mudara a tática de defesa. Ele iria tentar mostrar que era um homem desapegado
à vida, portanto capaz de tudo.
Ah! Ele iria por para foder. Todos o
escutavam calados. Ele falava e andava de um lado para outro agitado.
No emprego, fala, vou encarar o meu patrão,
acabarei com aquela peste, cabeça gorda desgraçada de uma figa.
Rodou e voltou falar em suicídio.
- Quem tem uma gilete aí?
O trabalhador, vestido com um calção, acordou
e não compreendeu porque o menino queria suicidar.
- Para que você quer uma gilete?
- Vou morrer. Vou me acabar, morrer, cansei. Saco
cheio. Entendeu?
O menino foi deitar-se num canto. O
trabalhador de calção ficou olhando-o e depois foi dormir também. O trabalhador
fora preso por causa de uma briga com a mulher enciumada.
Chega mais um menino. O primeiro acorda e os
dois se põem a contar valentias. O negro da escola pergunta se amanhã com todos
acordados, eles conseguirão manter esse tipo de papo sem se complicarem. É
difícil saber dentre os que estão dormindo os que desafiarão os meninos.
Chega outro preso. Gordo e alto. É um dos
três que tem paletó. O gordo é alto, tem os dentes para fora e um sorriso
fácil. Lembra o Zé Adão, que, segundo o Milton, por causa dos dentes para fora,
o que é duro ao Zé Adão é não rir.
Não rir é impossível, o gordo não consegue
fechar a boca. O gordo está falando baixinho e ininteligível. Pedem para que
ele fale mais alto. Ele é dono, sócio de um bar e trabalha a noite.
- Dou tudo para a mulher. Trabalho de noite e
ela me fez uma safadeza. Eu a encontrei, flagrei os dois. Aí eu perguntei ao
sujeito, poxa cara por que você fez isto comigo? Ele respondeu qualquer coisa,
quis matá-lo. Pensei e me contive. Apenas o empurrei para que sumisse da minha
frente. O sujeito caiu, os óculos e o rote quebraram. A coisa ficou preta pra
mim, a cana me disse que aquilo é agressão.
O gordo encolheu as pernas, passou as mão no
rosto, a pele das suas mãos estavam cheias de hematomas, como se ele tivesse
esmurrado para valer uma parede.
- Eu sustento a mulher e o outro vai lá,
folgado, tranquilo, aproveitar a sopa, nadar na sopa, isto não. Ela é nova,
flor da idade. Eles vão me pagar. Eu mato e fujo. Esta é a primeira e última
vez que eu vou preso. Que mulher louca! Por que ela fez isso? Será por
dinheiro? Ela pensa que a juventude não acaba. Ironia, não é? Fomos presos os
três, eu, ele e ela. A polícia trouxe todo mundo. No final das contas, eu
fiquei. Os dois foram embora. Veja só, os dois, ele e ela anh!? Eu fiquei atrás
das grades. Os dois foram embora juntos. Que merda, não é? Hem?!
O gordo continuou no canto com as sua imagens
de amor traído e de ódio, a preparar sua vingança.
*
Duas eram as opções, ficar acordado e dormir
enquanto todos estivessem acordados, na manhã seguinte, em algum lugar que
batesse sol ou deitar no chão frio.
Duas pessoas apenas se mantinham acordadas. O
moço, que estava sentado na extrema esquerda dos quatro, passou a caminhar.
Esperava as badaladas de meia em meia hora. Cinco, seis, tossiam. Vez ou outra
conversavam o Gordo, Ernesto e Tarcísio. Os presos depois de terem dormido, no
máximo um quarto de hora, acordavam, como se tivessem combinado o momento exato.
Ernesto controlava a hora pelo relógio da Igreja da Lagoinha,
Dois, três levantavam, faziam um círculo e
conversavam ou continuavam a conversa anterior. Era mais um papo de cinco, dez
minutos e depois dormiam novamente.
Subitamente, do meio daqueles corpos mal
arrumados, uma pessoa erguia-se sonâmbulo para cair em outro lugar.
Outros mudavam de posição como se procurassem
um lugar macio ou quente no marmorite. Protegidos da luz que vinha do pátio e
garagem, nove dormiam debaixo do janelão de grades que ocupava toda a metade
superior da parede fronteira ao pátio. O vento praticamente não incomodava os
privilegiados que conseguiam um lugar debaixo da janela.
A porta abriu novamente, Ernesto era o único
que estava de pé. Entrou um preso sem camisa e descalço, trazendo um blusão nos
braços.
O carcereiro falou para o preso.
- Agora você vai tomar banho, ouviu?
Em seguida, o carcereiro fechou a porta acordando um bocado de gente.
De fora o carcereiro repetiu a ordem.
- Vá tomar banho, tem uma torneira aí.
O carcereiro dissera isto como mofa, gozação.
É uma característica da autoridade ser irônica no uso do poder. Tanto que
ninguém esperava o que o rapaz fez. O rapaz tirou a roupa, ficou nu, e procurou
a torneira. Tomou banho. Os meninos riam. O gordo ria. Tarcísio ria. Também no
rosto deste rapaz, que tomava banho, havia o medo e o pavor. Medo de que? Pavor
de que? Quem podia causar-lhe tanto medo? Os policiais? Os outros presos?
Aquela noite? Ou o que ele tivesse feito? Depois do banho, ele veio deitar-se
no chão. Disse que o carcereiro prometera conseguir-lhe uma cama se ele tomasse
banho.
- Tomei banho, cadê a cama?
Um dos meninos, o da calça molhada, bateu a
mão no chão.
- Olha aqui a cama, veja como ela é macia.
Veja, como a minha mão pula. Isto é um big colchão de mola.
- Colchão de Ortobom, bom para as costas.
- Este aqui é ótimo para a canga, no outro
dia a cangalha cai direitinho.
O rapaz que tomou banho não conseguiu dormir
o resto da madrugada. Ficou o tempo todo perto da porta, murmurava coisas
desencontradas.
- Minha tia está aí – e procurava uma melhor
posição para colocar o ouvido. Ela veio me tirar. Minha mãe não merece isto que
eu fiz. Tentaram me matar. Ele apontou a arma para mim. Eu avancei, não
acreditei e fiz uma loucura. Parti o cara. Foi fácil, não sei como, eu tomei a
arma dele e... não sei mais... não sei... minha tia.
Ouviu passos no corredor chamou por André.
- André?
Em seu rosto jovem e calmo, magro, nenhum
sinal de perturbação muscular, apenas os olhos que eram incrivelmente tranquilos
e otimistas, raramente apavorados.
Chamava por André, não obtinha resposta e
mais uma vez procurava captar os sons do corredor.
O dia começou a clarear. As luzes da cadeia
ainda estavam acesas.
Chegou um outro, este trazia uma nota de
culpa, auto de flagrante. Processado no artigo 115 do Código Penal. Negro,
maltrapilho, um enorme sapato de bico fino, blusa e camisa verde, jeito de velho,
olhar manso e calmo. Parecia com uma pessoa conhecida. O negro meio corcunda
era um rapaz ainda novo, entre vinte e vinte e cinco anos, calado e humilde.
Veio para a cadeia, preso em flagrante, tentativa de homicídio, esfaqueou um.
- Como ficou o sujeito?
- Me disseram que o cabra está fecha não
fecha.
- Deve ser mentira Eles querem te apavorar,
certamente.
O negro de sapato de bico fino mostrava a
nota de culpa e enquanto os outros liam, ele observava as contrações faciais
daqueles que liam.
- Este negro me lembra um amigo, disse
Ernesto. Lembra-me o Elson, um velho amigo, que ficou perdido no norte, um
pouco acima do rio Amazonas, numa daquelas bacias secundárias.
Esse negro do artigo 115 não sabe ler, mas
percebe muitas coisas, percebe muito mais do que a leitura poderia lhe
proporcionar. Ele lê no comportamento dos outros, nas reações, ele lê através
do entendimento dos outros. Será impossível enganá-lo se o Gordo quiser mentir
ou diminuir o significado de uma nota de culpa da prisão em flagrante.
A manhã se completava, os sons chegavam Apagaram
a luz.
*
Durante a noite, um moço alto, forte, com
fisionomia agastada, traços harmoniosos, levantou-se uma porção de vezes para
ir ao banheiro. Antes da chamada, quando todos os presos estavam de pé dispostos conforme as exigências dos
carcereiros, perguntei-lhe o que houve.
Seu nome é Lourenço, cearense, garçom em São
Paulo. Veio a Minas para a inauguração de um restaurante.
- Eu não queria vir, mas sou um curioso, um
xereta. Quis aproveitar a oportunidade de conhecer Belo Horizonte ganhando
também algum. O dono do restaurante quando esteve em São Paulo me contratou sob
palavra. Era só chegar e teria trabalho
para mim.
Seu azar foi que ao deixar sua pasta James
Bond em um canto do restaurante, para esperar o proprietário, roubaram-lhe
todos os documentos e mais 250 cruzeiros. Contrariado pelo barulho que Lourenço
aprontava, o dono do restaurante chamou a polícia. Em suas investigações a
polícia desconfiou de Lourenço.
Tudo começou com uma gozação. Eis uma
espécime rara de cearense, um cearense sem cabeça chata! Dissera um
investigador. Daí para a dúvida quanto a naturalidade e quanto a honestidade de
Lourenço.
Um cearense que não tem cabeça chata, que não
é pequeno, desaforado, aí a polícia começou a raciocinar. As premissas e os
indícios que sempre acompanham o raciocínio da polícia são sempre iguais a
estes. Lourenço tornou-se um suspeito.
Em pouco tempo já o consideravam um ladrão.
Assim o penderam. Era ladrão e se não fosse ladrão não seria cearense. Havia
alguma coisa atrás daquela identidade ocultada, pois para a polícia já era
pacífico que Lourenço não era cearense.
- Tem linguiça e muito caroço nesse angu – dissera o investigador
ao dono do restaurante para justificar porque eles levavam Lourenço.
Lourenço tinha pescoço e um polícia chegou a se referir a um
exemplar de cearense citando um presidente militar do país. Outro policial se
referiu à maneira como o presidente dava nó na gravata todas as manhãs.
Levaram Lourenço para a Delegacia de Furtos e Roubos, antes de
chegar a resposta pelo telex sobre a identidade de Lourenço o pau já havia
começado. Veio a resposta, os policiais ficaram embasbacados, Lourenço era de
fato cearense e do sertão. E agora? Se é cearense passará a ser ladrão e assim
começaram os interrogatórios infalíveis.
Um policial se adiantou para Lourenço.
-
Você vai ter que explicar tudinho para a gente, como conseguiu
aquelas duas malas de roupa.
-
Onde você roubou aquelas roupas? Gritou outro policial.
-
O que você está fazendo que ainda não tirou a roupa. Fique nu.
Daqui a pouco nosso papo vai esquentar.
Lourenço não entendia nada
daquilo. Esses homens ficaram loucos.
- Tire a roupa logo.
-Olhem só o tamanho do pintinho
dele.
- Coitadinho.Isto não faz mal a
ninguém.
-Agora nunca mais ele vai poder
tirar uma, nós vamos esbagaçar isto.
- Anda filho da puta, vai dizendo
onde você roubou.
- Roubei o que?
- Você é um ladrão refinado.Não
vai querer falar, hem?
- Cearense em São Paulo só se dá bem
por isso: roubam.
Aproximou um policial e propôs um
acordo com Lourenço. Ele falava. Não haveria processo, as coisas seriam
distribuídas com a os policiais amigos.Tudo ficaria limpo. Quem sabe se ele não
iria poder ficar aqui em Belo Horizonte. O campo era promissor para gente
inteligente como ele.
Lourenço falou que ele poderia
até roubar mas que de fato não havia roubado até então.
O policial se afastou, apanhou
uma borracha de pneu de caminhão.
Lourenço acordou na cela, não
podia virar o corpo. Tentou tirar a mão que estava presa dormente sob o corpo e não conseguiu.
Todos os seus movimentos eram
dolorosos. Estava nu. Quantos chutes levou na cabeça? Não se lembra. E se os
chutes o deixassem maluco? Pensando, ele estava. Que sujeito covarde aquele! O
pinta segurava a cabeça de Lourenço e enchia de tapas. Quantos eram? Contara
cinco, mas deviam ser mais, vinha mão, perna, braço e pé de tudo quanto era
lado.
Não havia dúvida, aquilo era
muita covardia. Se ele saísse, se ficasse inútil, iria atrás de um por um,
pegar um por um e fazer as sacanagens mais violentas possíveis, seria cruel,
mataria todos depois de muita monstruosidade.
Ele teria coragem para isso.? Não
sei. Mas como a polícia tem? Lourenço não sentia o pênis, seu ânus parecia ter
sido queimado por cigarros.
Abriram a porta, Lourenço viu
entrar o carcereiro que falava com voz branda, dizia que ele, como homem e como
polícia, condenava aquele comportamento dos policiais daquele plantão. O
carcereiro aplicou-lhe uma injeção e deixou dois analgésicos para Lourenço.
Dois dias depois de estar
totalmente recuperado, mandaram-no embora.
Lourenço pediu suas malas.
- Malas?!
O carcereiro olhou para Lourenço
não acreditando no que ouvia.
-
Exatamente, as malas, as minhas malas, as minhas roupas.
O policial passou as mãos no
cabelo. Inacreditável! O moço ganhando uma boca daquelas de escapar sem
processo, ao invés de ir embora, estava procurando complicações com a polícia.
Lourenço viu chegar dois policiais vestidos com as suas roupas.
-
Senhor, aquelas duas malas me pertencem, eu quero as minhas malas,
vou falar com o delegado.
-
O delegado não está, só chega mais tarde e, mais ainda, não
sabemos a hora em que ele chega. Principalmente quando acontece como agora que
ele saiu para uma diligência.
O carcereiro ficou calado, depois
voltou-se para Lourenço.
-
Rapaz, eu quero ser seu amigo, sou um policial velho, que está
aqui neste posto porque não quer se envolver com histórias sujas, e elas há,
dez, vinte por dia. Tenho mais de vinte anos vendo covardias, é um conselho que
eu te dou, vá embora. Não há para quem apelar. As outras autoridades são piores
do que estas, são mais sutis. Esqueça as malas, esqueça as roupas. Você é um
moço trabalhador, conseguirá outras.
-
Até logo.
-
Isto meu rapaz, vá embora, vá com Deus.
Na Secretaria de Segurança do
Estado, Lourenço contou toda a sua história, pediu um exame de corpo delito no
Instituto Médico Legal. O delegado, fumando um cigarro atrás de outro, ouviu
toda a historia de Lourenço.
Os únicos movimentos do delegado
eram em torno do cigarro e para jogar as cinzas em qualquer lugar, para acender
um novo cigarro, para soprar um jato de fumaça para o alto, para apertar a
bagana no cinzeiro.
Garantiu a Lourenço que suas
coisas seriam recuperadas, falou dos propósitos de moralização e do sentido de
colaboração que aquele depoimento trazia. Lourenço receberia peça por peça. Era
uma quarta-feira, de manhã quando fora solto pela Delegacia de Furtos e Roubos.
Saiu da Secretaria de Segurança e
entrou no bar mais próximo, não tinha nada no bolso, nem dinheiro, nem
documentos, pensou o que deveria fazer, voltar ao restaurante. Nunca voltaria
naquele restaurante, iria para São Paulo. Como? A garçonete colocou uma xícara
de café diante dele.
-
Não quero nada não, moça. Muito obrigado.
- Se não quer nada, faça o favor de se
retirar. Aqui não é lugar de descanso.
Saindo da Secretaria, Lourenço
lembra dos modos do delegado, ele não confiou naquele delegado. Com fome,
tentou inutilmente se concentrar para ter uma ideia de como conseguir comida e
tomou uma decisão, sair imediatamente desta cidade, de qualquer jeito, de
carona, a pé, enfim sair.
Uma radiopatrulha encostou.
-
Seus documentos por favor?
Ele não esboçou nenhuma
explicação. Sorriu e se conformou com a sorte. Veio a imagem da fumaceira no
gabinete do delegado na Secretaria e repetiu, dentro do camburão, as palavras
da autoridade.
-
Inegavelmente, inegavelmente, tais fatos são absurdos. A corrupção
da nossa polícia nos entristece.
E o delegado amassava a bagana.
Conduzido direto ao Departamento
de Investigações foi colocado à disposição da Vadiagem. Passou a ser mais um
desesperado, embora calmo, não ameaçando revide, falando pouco, não se
referindo aos policiais com intenções assassinas, apenas tinha um riso até a
metade.
-
Não vou matar ninguém, não vou tornar-me um criminoso, que esta
seja a última vez, a primeira e a última vez que venho a Belo Horizonte. Juro
que nunca mais volto. Foi tudo um grande azar. Todos estamos sujeitos a isso,
todos nós que deixamos os nossos familiares e viemos para a cidade grande, todos nós que somos pobres,
todos nós que lutamos e trabalhamos duro.
Lourenço apontava os outros
companheiros de cela.
-
Aqui, sim, entra tudo quanto é espécie de pessoas ladrões e
bêbados, vagabundos, assassinos, tarados, maconheiros, inocentes, estúpidos,
loucos e os que estão enlouquecendo.
Aquelas pessoas sujas causavam
repugnância a Lourenço, que se afastava
de todo mundo. Ele não escondia isso para ninguém. Um sujeito veio conversar
com Lourenço, falava alto sobre a sua prisão, quando o sujeito topou com o riso
de desinteresse de Lourenço. Metade de
uma palavra o cara engoliu e saiu sem muita conversa. Este corte rápido da
palavra encerrando a conversa, foi
presenciado por todos. Todos olhavam para os dois esperando para ver o que ia
dar. O sujeito teve medo, afastou-se sem virar as costas para Lourenço e
procurou um lugar para sentar, batendo com as costas na parede e deixando a
perna sobre as coxas de um rapaz.
O rapaz passou as mãos na perna
do sujeito e disse.
- Moço, suas pernas são macias.
- Todos trazem doenças, continuava Lourenço, sujeiras e parasitas,
muquiranas, chato. Isto é uma pocilga abandonada.
Lourenço enfiou as mãos no bolso e ficou
caminhando para lá e para cá, indiferente ao homem que humilhara.
O
gordo queria saber quantos dias de prisão dava o artigo 115, prisão em
flagrante. Ninguém sabia. O gordo mesmo respondeu.
-
O artigo 115 deve dar 115 dias de cadeia. Artigo 115, 115 dias. Mas se alguém
fizer alguma coisa, a gente pode sair antes. Ninguém sabe da minha prisão,
ninguém da minha família. Amanhã, aliás, hoje mesmo, meu sócio ficará sabendo e vem para
cá. Ele me tira da prisão.
Os
cigarros que apareciam eram distribuídos igualmente entre todos os fumantes.
Nunca acendiam dois cigarros ao mesmo tempo. Era sempre um e este rodava por
toda a cela. As baganas rolavam de boca em boca, pela boca de umas vinte
pessoas, que a fumavam até queimarem os dedos e os lábios.
Um nordestino queixava-se da possibilidade de
ter que passar o natal na cadeia. Seu nome era Ribamar, usava uma japona,
dizia-se descendente de índios, tinha o rosto marcado por bexigas e talhes de
navalha. Sua voz era forte. Era do Maranhão, deu o nome de sua cidade e dos
seus avós índios. O rádio em uma casa comercial da Lagoinha, ligado a todo
volume, tocava um samba de Martinho da Vila.
-
Martinho da Vila é malandro, ele sabe viver – disse Ribamar.
Ernesto e o descendente dos
índios bateram um papo na porta da cela. Ernesto vivera em Cerrito, em
Montevidéu, e Ribamar já roubara em Pocito.
Qual foi o seu caso, perguntou
Ribamar.
-
Morte.
-
Empreitada?
-
Também mato por empreitada, este agora foi vingança.
-
Por quê?
-
Os caras queriam abusar de minha mulher, numa casa de mulheres.
-
Era bonita?
-
Não.
-
Estou numa fria, disse Ribamar, a Polinter mandou que me
segurassem, agora nem que o diabo nasça estes desgraçados me soltam. Ouvi um
zumzum, parece que é qualquer coisa lá fora. Em Buenos Aires, andei metendo a
mão demais por lá, fiz limpeza adoidado. Interessante é que não deixei rabo,
fiz tudo na limpeza e me surge esta. Acho que tudo não passa de uma sugesta, se
colar eu me perco e entro na fria. A coisa é um jogo. Vai ver os caras pescaram
no voo e querem pegar a fruta de qualquer jeito. Eles estão enganados, conheço
as manhas. O negócio é não bolinar as ideias, aceitar o natal na cadeia, sem
mulheres, roer sonhos. Manjo este povo.
O carcereiro chegou até a porta
do xadrez, bateu com uma vara de ferro contra as grades.
-
Atenção, todos encostem na parede. Vai começar a chamada.
8.5.2
31.5.02
A caminho de Neves
Uma nova
temporada começaria em que tínhamos algumas certeza. A primeira seria a
recuperação física com tratamentos programados no Hospital das Clínicas da UFMG. Logo fui
alojado em uma das celas da enfermaria. Éramos os primeiros presos políticos
transferidos de Linhares para a Penitenciária Agrícola de Neves.
Lá já estava
Márcio Lacerda, o Gringo.
A segunda
certeza, teríamos acesso a uma biblioteca e uma boa surpresa. A biblioteca
abandonada, era, entretanto, dotada de um grande acerco e de muitos bons livros.
Trabalhando
na área de saúde da penitenciária, haveria espaço para nossos estudos e tempo
para leitura.
Trabalhávamos
na farmácia, onde predominava a manipulação de medicamentos, sob a orientação
do farmacêutico formado ela UFMG, seu Machado.
Os outros
dois presos políticos eram oriundos da Polícia Militar e ficaram isolados do
nosso convívio.
O Dia
Anterior
“Ainda o pensamento criminoso de um malfeitor possui mais grandeza
e nobreza do que os prodígios dos céus”.
Hegel
O homem sem destino
1ª. Parte
A missão da
escolta: matar o prisioneiro
A missão
oficial dos policiais era transportar o preso da penitenciária de Linhares para
a Penitenciária Agrícola de Neves. A verdadeira missão: no caminho, o preso
seria executado.
Simples, uma
tentativa de fuga e a execução.
Ao receber o
preso em Linhares, Juiz de Fora, os policiais se assustaram.
Como um
preso que mal conseguia andar teria condições de tentar uma fuga?
Nos 375
quilômetros de Linhares a Neves, as dúvidas começaram na recepção do preso.
Andrade, o
policial mais velho, a seis meses da aposentadoria, quis recusar continuar
aquela operação.
“Vamos
levá-lo, no caminho encontraremos uma solução”.
A opinião do
outro policial prevaleceu, a própria Penitenciária de Linhares se recusava a
aceitar o preso de volta diante da documentação que autorizava a transferência.
Consideraram
que diante da documentação recebida, o preso já estava entregue àquela escolta
e que não era mais um preso político da Penitenciária de Linhares.
Algemado, no
banco de trás, o preso percebe a tensão dos policiais. No volante, Andrade quer
discutir, imediatamente, uma solução.
- Vamos
abastecer. Vou trazer um café para você.
Os dois
policiais conversam. Olham para o carro. Fazem gestos. Eles não se entendem.
O preso
recebe o café.
Depois de
duas outras paradas, os policiais decidem conversar dentro do carro.
- Nós não
podemos errar.
- O que
faremos, então?
- Não sei
ainda, sei apenas que não dá para fazer nada. Colocaram a gente numa fria.
- Uma fria, não.
Numa sinuca. Não quero responder a um processo administrativo, muito menos ser
responsável por um crime.
A discussão
corria sem que dissessem claramente que tinham dúvidas se executavam ou não o
prisioneiro.
A simulação
da fuga estava afastada. Sabiam que responderiam por um assassinato.
“Não se
preocupem com ele, ele não tem pernas para andar, muito menos correr. É quase
um aleijado. Nem precisam colocar algemas a não ser para evitar uma tentativa
de provocar um acidente”.
Fora a
observação dos militares ainda em Linhares, Juiz de Fora.
Andrade
repetia e sinalizava que nesta fala havia, para ele, o descarte da proposta da
fuga e da execução. Mais grave ainda, os próprios militares de Linhares
poderiam depor e incriminá-los como assassinos.
O outro
policial ainda insistia em cumprir a missão.
- Recebemos
50%. Não vamos receber o restante? Temos que pensar uma saída.
- Entramos
numa fria, meu chapa.
Nas mãos,
eles tinham a vida e o destino de um homem.
Decidem
seguir para Ribeirão das Neves e entregar o preso na Penitenciária Agrícola de
Neves.
Lá, acontece
o inesperado. A direção da Penitenciária recusa receber o preso. O susto dos
dois policiais da escolta surpreende os policiais na portaria da penitenciária.
Não podiam aceitá-lo porque, simplesmente, não havia nenhuma autorização para
receber ninguém. Eles percebem que a expectativa das autoridades era que o
preso já tivesse sido executado no trajeto de Juiz de Fora a Neves.
- Não vamos
cair nesta arapuca. Vamos direto para Belo Horizonte, vamos jogar o preso no
Depósito de Presos da Lagoinha.
- Como,
faremos isto, Andrade?
- Não
diremos nada sobre a escolta nem sobre o transporte de Juiz de Fora a Neves,
deixaremos o preso na Lagoinha. Amanhã, no boletim de ocorrência, afirmaremos
que é um preso em trânsito para a Penitenciária. Vamos aguardar a decisão da Secretaria de Segurança e do
Exército. Ele é um condenado pela Lei de Segurança Nacional. Não decidindo
nada, nós avisaremos que estamos voltando para Linhares, em Juiz de Fora.
2ª. Parte
O registro detalhado desta noite no Depósito de Presos do
Departamento de Investigações da Secretaria de Segurança do Estado de Minas
Gerais serviria apenas para lembrá-lo do dia anterior. Sobre o dia anterior ele
somente poderia escrever quando tivesse total segurança. Décadas depois, P escreveu sobre este que está aí O
Dia Anterior.
Esta é a Noite ou o Dia Seguinte
A partir deste momento, a história será
diferente. A história é outra
Um depósito
de gente
Muitos são
os personagens desta noite, eles vieram de muitos lugares – desceram os morros,
saíram de dentro de oficinas, de uma rua estreita e mal cheirosa, de lugares
mal afamados, eles saíram de bares, dos lugares da cidade onde os homens de
bem, as pessoas de bem, são desconhecidos.
Cirilo é um
personagem. Outros são Lourenço, um nortista cujo tragédia era não ter a cabeça
chata, o Louco e o Garçom Ribamar, o Ladrão, Baiano, o Assaltante e Tarcísio. E
o Traficante.
Existem mais
outros.
O cenário
onde se desenrola quase toda a ação descrita é a Cela 3 do Depósito de Presos
da Lagoinha, em Belo Horizonte.
O tempo de
duração desta noite vai das 23 horas às 11 horas da manhã.
Primeira cena: Ritual da Revista.
Duas
mocinhas, uma grávida, estão na fila. A fila era longa, seriam uns quinze
homens e mulheres, esperam a vez de passarem pelas mãos dos prontidões,
deveriam dar o nome e os demais dados de identificação para em seguida tirarem
toda a roupa.
Nus, um de
cada vez, eram encostados em uma parede, primeiro de frente para os policiais,
depois de costas, abaixavam, abriam as pernas, os braços e a boca.
Apesar de
toda esta vigilância e este rigor das revistas, a maconha, que era uma das
drogas mais combatidas pela polícia, era comerciada dentro do Depósito e havia
fartura para os fumante de jereré.
“Tranquilizamos os presos e a cadeia vai sem dor”.
A menina grávida apertava, angustiada, a mão da outra menina. Ela
via lá na frente homens e mulheres sendo despidos. Homens e mulheres obedecem
às ordens de quatro policiais: tirem a roupa, levantem os braços, abram a boca,
abram as pernas, virem (esse já está acostumado, diz um policial com as mão nas
nádegas do preso), abaixem, pulem como sapo, pulem como sapo, como sapo.
A menina tremia, suas lágrimas não tinham controle. Nem as
lágrimas e o pavor de um outro preso, um rapazinho miudinho, que não conseguiu
controlar a tremedeira também. Ele rodava na fila. Falava, falava baixinho,
falava alto, explicava, não era um igual a todos aqueles ali, "não era bandido
e estava ali, vexame, algo terrível, meu Deus, o que ia acontecer."
Ninguém parecia ouvi-lo.
Ele espichava os olhos para a porta de aço que havia jogado-o ali
no corredor e na fila.
Lá atrás estaria a sua última esperança, um detetive igual a ele,
mirrado e de carranca, mas um homem que ele acreditava que conhecia e que não
podia, não conseguiu identificar, localizar nem na rua e nem na cabeça.
Agora era o corredor e a fila. O corredor servindo de acesso
direto dos camburões aos xadrezes e de saída estratégica, muitas vezes, para a
polícia.
Na fila, a espera do ritual da revista. O som de fundo era um jogo
da nossa seleção em busca da glória do mundo.
A fila obedece ao ritmo inverso do futebol, anda quando o jogo
para. Por causa, talvez, do jogo, há um pouco de descontração entre os
policiais, assim na revista de uma mulher, as brincadeiras não acabam. Levantam
os seios para ver se não havia nada escondido, simulam um relacionamento,
simulam uma curra.
- Vejam como ela é lisa, pena é esse talho de navalha na barriga.
Vejam como é liso.
O cassetete percorre os braços dela e fica firme em cima do talho.
A televisão chama todo mundo. Há uma grande chance de gol.
O rapazinho miúdo quer se explicar. Tem na mão um remédio e uma
receita.
- Gente, eu tenho que tomar este remédio. É uma injeção contra
tétano. Antitetânica. Eu não briguei. Eu não bati em ninguém. Vejam, eu até
apanhei.
Ele consegue se aproximar de um policial. Já é o primeiro da fila.
- Cheguei no bar para beber. Faço todos os dias. É a verdade.
Dentro do bar, começou a briga. Não consegui sair e procure me defender.
-Só?
Ele calou. Certamente não acreditavam no que ouvia. Escutaram o
que ele falou. Pior ainda, responderam. Pior, duvidaram da sua verdade.
-Só? É só mesmo, seu filho da puta, fale de uma vez, sem piscar,
nome, endereço, onde foi preso e porque. Desembucha e rápido.
-Não sei porque fui preso. Eu desmaiei. Foi porque eu desmaiei e
me levaram para o hospital. Foi porque me levaram para o hospital, porque eu
não tinha dinheiro para pagar a vacina antitetânica.
-
Nome, endereço, local do evento...
-
Tire a roupa.
-
Levante os braços.
-
Encostes na parede.
-
Abra as pernas.
-
Abra as pernas.
-
Ande, abra as pernas.
-
Ande, filho da puta, abra as pernas!
Gritou o
policial velho e franzino.
Na sua
frente estava o preto da Escola de Samba Unidos do Seu Arthur, em homenagem ao
próprio seu Arthur lá do morro, um português velho e besta, que sempre que
podia deixava a turma do futebol, que era a mesma da Escola, beber sem pagar. Isto
quando o portuga também estava numa boa.
Era a hora
em que a turma da Escola de Samba escutava o portuga falar dos seus sonhos, dos
seus romances, das suas entradas noturnas em casas de senhoras respeitáveis,
dos seus medos de assombrações e dos seus passados que não se repetiam para
finalizar contado a história do grande desfile da Escola de Samba que levava
sempre o seu nome para as ruas.
Logo atrás
entra um moço pequeno e magro. Seus movimentos rápidos e secos davam o ritmo para
as suas explicações. De uma forma ou de outra procurava convencer os policiais,
todo mundo, se possível enganar a todos, para se safar dali. Ele tinha medo de
cadeia. Tinha medo do ambiente da cadeia e do que a cadeia podia lhe fazer.
Este pequeno moço é inquieto, tinha entradas avantajadas, cabelos lisos e
untados de vaselina.
Havia em seu
rosto medo e pavor. Em seu rosto o pavor se desenhava com traços mais nítidos
do que o pavor inocente das crianças famintas, o pavor das crianças famintas
não está em seus rostos, mas na consciência que temos da inanição e do perigo
para a vida de uma criança a falta de alimentos. O moço magro trazia em sua mão
uma receita e no braço um curativo. Em seu corpo havia rastro de sangue e mertiolate.
Ele estende a receita para o prontidão.
"Tenho
que tomar este remédio. É contra tétano. Antitetânico. Briguei com seis, não
apanhei, não entreguei ninguém e quem acabou preso? Eu."
Toda a briga
foi descrita para o policial de plantão. Este, enquanto fazia as anotações do plantão,
assistia a um jogo de futebol transmitido pela televisão diretamente do Rio. O
pequeno sujo de sangue e mertiolate, falando para o policial, tentava,
inutilmente, atrair a atenção das outras pessoas por perto. Nem os presos e nem
os eventuais policiais que saíam de suas repartições para ver o jogo conseguiam
se interessar ou ouvir o que dizia o pequeno. Policiais passavam com as mãos
cansadas e com alguns apetrechos de tortura, máquinas, as chamadas maquininhas,
pedaços de fios, paus, latas e pedaços de borrachas. Nesta época o choque
elétrico e a palmatória, assim como o pau de arara e o afogamento eram as
torturas mais comuns.
Encerrado o
ritual da revista, todos os presos registrados pelo plantão são remetidos para
a cela três.
O policial
iria fazer agora a ficha de uma das mocinhas.
- Qual o seu
nome?
Perguntou o
policial, enquanto comentava o lance do jogo que ocasionara um gol. Segundo a
opinião do policial de plantão e responsável pela televisão ligada, opinião que
todos os outros escutaram com aprovação, o atacante nunca mais repetiria a
atuação da copa de 70.
O policial
levantou a cabeça indagando com um gesto. Ela respondeu
–
Maria Lúcia
de Souza
–
Maria Lúcia
de Souza, repetiu o policial. Tem documentos?
Depois de um instante, voltou a olhar novamente a menina,
conferenciou com outro policial que tomava café, pelando, numa xícara de
alumínio e que, por isso mesmo, passava a xícara de uma mão para outra. Depois
nos disseram que ele tinha mania de tomar café daquela maneira.
- Olha, senhorita Maria Lúcia de
Souza, presta bastante atenção na chamada. Tem outra Maria Lúcia de Souza lá
dentro. A partir de agora seu nome será outro. Você se chamará Maria Lúcia de
Souza Segunda.
O policial acendeu o cigarro e disse para a menina que, dentro em
pouco ela conheceria a outra Maria Lúcia.
Na cela três
Quando chegamos, 14 pessoas estavam estendidas no
chão e fazia frio, já era quase meia noite. Os quatro que entraram agora
reuniram-se para conversar. Ninguém estava interessado em saber o nome de
ninguém, todos queriam saber o que cada um havia feito para estar ali.
Um senhor de cabelos brancos, magro, bêbado, como um maluco pede e
procura por um cigarro.
- Um cigarro? Pede.
- Um cigarro, quem tem um cigarro? Bagana? Qualquer coisa? Pó,
poeira.
- Por favor, você tem um cigarro? Ninguém tem?
Nenhum dos
quatro recém-chegados responde. Ninguém entendia o desespero daquele homem. Estranharam que a
única preocupação daquele homem fosse o cigarro.
O homem
girou por toda a cela, passou por cima de todos e voltou.
- Eu sou da
polícia, eles não sabem com quem estão mexendo. Amanhã eles verão.
- Eu sou eu.
Estes documentos mostram quem eu sou. Sou um funcionário público, alto
funcionário. Trabalho no Estado há tanto tempo que até já esqueci da minha
mulher. Esqueci que eu tinha uma mulher e que eu tinha filhos. Perdi tudo,
perdi a vergonha. Agora estes bundas sujas fazem isto comigo. Eles me pagam.
Você tem um cigarro? Por favor.
Agora
aparece o carcereiro que bate na porta.
- Silêncio,
o meu, senão tem pau.
Não se ouvia
nenhum som. O policial ainda fez hora na porta. Olhou paras as grades da janela
e saiu. Novamente, o bêbado quebrou o silêncio numa tentativa de ironizar a
situação.
- Pau?
Riu.
- Nem mole,
nem duro, de jeito nenhum.
O rapaz da
escola da samba mostrou um cigarro e uma bagana para o funcionário. E os
fósforos? Ninguém tinha.
Todos mal
vestidos, homens pobres e alguns com a própria roupa do trabalho, como aquele
menino cuja roupa no trabalho de ajudante de pedreiro era um calção.
O homem de
cabelos brancos, o funcionário público, olhava para o cigarro e murmurava
frases desconexas para dizer que ele aceitava que não tivesse cigarro, mas ter
cigarro e não ter fósforos era demais. Dava para estourar qualquer um.
- Fósforos?
Ninguém
tinha. Ninguém. Ele não aguentou, desesperou, gritou.
- Preciso só
de fósforos, o cigarro já arranjei. Isto não vai ficar assim, não pode
continuar assim.
E isto ele
dizia gritando. Os passos no corredor que sempre anunciavam a presença do
carcereiro ganhavam intensidade. O funcionário público calou. O silêncio voltou
dentro da cela, os passos eram firmes e na direção da cela. O funcionário olhou
para os quatro sentados em seu canto. Olhou para o moço da Escola de Samba,
como se o quisesse culpar por ter lhe dado o cigarro.
O pedreiro
falou com voz firme e pausada.
- Fique em
paz, companheiro. Sente aqui conosco.
E indicou um
lugar para o funcionário.
- Vejo que o
senhor é um sujeito distinto. O senhor acaso tem cigarro?
O bêbado
tentou murmurar estas palavras para não ser ouvido pelos outros três.
- Nem cigarros,
nem fósforos. Não fumo
O bêbado não
acreditou. De repente, tornou-se loquaz.
- Qual foi a maior invenção do mundo? Qual
foi a maior invenção do mundo? Hem? Foi a dos índios. Você sabe qual foi? Foi o
fogo. A maior invenção do mundo foi o fogo. Sabe qual foi a primeira cidade do
Brasil? Bahia e não São Salvador, não São Vicente. Salvador é o lugar das
macumbas e o lugar onde as macumbas dão certo. Lá tem os santos, o diabo, as
pimentas e as frutas. Gente boa. Ahahahahahahah!
Alguns
presos acreditam que é melhor estar na cela correcional porque tem chances de
sair e de alguma forma, de fato, esta possibilidade existe. Alguns imaginam o
que inventar para sair desta enrascada, outros acreditam que com um pouco de
imaginação e de malandragem conseguiriam se safar.
A verdade é
que os que ainda estão na correcional são os mais tensos. Vários são os fatores
que mantêm esta tensão, como, por exemplo, o desconhecimento de quem são as
outras quinze, vinte, pessoas que estão ali na cela com eles. O perigo de
existir ali um louco, a incerteza sobre a sua situação, será ou não será
mantido preso, isto sem considerar o que este sumiço poderá ocasionar no
trabalho, na família e nos negócios.
Na cela
ninguém tem cobertor. Nada que pudesse servir para forrar o chão de marmorite.
- O homem
que vem parar aqui tem que ser castigado. Ele deve alguma coisa. Aqui tem que
ser o inferno. Cidadão? Lei? Cidadão é o homem, E se o homem é criminoso, ou
suspeito, deixa de ser homem, deixa de ser cidadão e entra no pau porque não
pertence a raça humana.
- Agora,
pode anotar e um dia você escreve, a lei foi feita para barbarizar, a lei foi
feita para punir. E o que é punir? É bater, quebrar a pessoa. Suspeito - isto
não existe para nós. Ou é ou não é. Quem não é? A gente boa, os ricos. Quando
entra, mesmo que não seja suspeito, passará a ser.
O policial
indicou a flanela com gasolina e perguntou com ameaça e ironia.
- Você está
agora em nosso arquivos. Sabe lá o que é isso?
Chega um
novo preso. Ele está apavorado. Diz que trabalhou hoje como um desgraçado.
Encostou o carro em casa. Passou na padaria e comprou pão. Quando esperava a
carona de um amigo para ir à casa de um galho, a polícia o prendeu. O que ele
fizera? Era mecânico. O carro na porta de sua casa era do vizinho para quem
mandara a chave. O carro seria roubado? Não. Por que o prenderam? Sua roupa
estava suja de óleo, as mãos estavam inchadas e untadas de graxa.
Enquanto
falava suas mãos surgiam de repente, inchadas e doloridas, inchadas e sujas.
Tirou as sandálias e ficou descalço.
- Eu disse
para eles que eles podiam me matar, porque eu não vou falar nada. Não calo o
que eu não fiz. Não dá. Eu não vou dizer o que eu não sou. Nunca roubei em
minha vida.Nunca fui ladrão. Outra coisa, se eu tivesse roubado, também não
falaria, isto entre nós, porque eu não sou nenhum trouxa.
Somente na
hora da chamada soubemos que o seu nome era Tarcísio. Fora preso com a carteira
do trabalho e continua com ela no bolso.
O moço da
escola de samba do seu Arthur avisou-lhe que não era bom falarem naquele tom.
Tarcísio ficou apavorado quando lhe contaram o caso do homem de cabelos
brancos.
- Mas isto é
covardia!
Perguntou ao
cara da esquerda porque ele estava preso, se ele chegou hoje mesmo e se havia
muito tempo que estava na prisão. O cara sabia que Tarcísio não entenderia se
ele, por acaso, lhe dissesse a verdade, que estava preso há mais de 10 anos,
que não havia processo e que não havia nada, que ele vinha passando de uma
cadeia para outra. Considerando que poderia ser aceito como verdade por
Tarcísio, disse que estava preso a um ano e que estava ali de passagem.
- Um ano!
Tarcísio não
acreditou.
- É muito tempo.E o seu pessoal? E a sua
família?
A porta da
cela abre. O carcereiro olha para os que estão acordados e depois olha para o
menino como se olhasse para uma moça, fecha a porta de grades e entre os ferros
seus dentes brancos deixam escapar uma gargalhada recortada pela respiração de
asmático.
O menino
aproxima-se e fala de uma briga que aconteceu no bar da sua rua. Ele levou uma
garrafada na cabeça.
- Fiquei
tonto e não pude correr, por isso os homens me ganharam. Quando eu sair daqui,
vocês vão ver uma coisa, aquele filha da puta do dono do boteco ficará sabendo
o que é uma briga. Se antes a briga era com outras pessoas, desta vez será
comigo.
O menino fala. Quer ser o melhor e o mais
forte. Então, ele diz que os seus companheiros se acovardaram na hora do
bafafá. Que ele aguentou o pau sozinho. Fala, fala. Assume a valentia e se
torna valente dentro da cela. Ele entrara na cela com a calça molhada na mão.
De raiva e como prova de coragem, ele, que era valente, vestiu a calça.
Estranhou o silêncio dos outros presos e
quase tomou isto como prova de sua coragem e da covardia dos outros.
Falou, então, que a vida não lhe interessava.
Mudara a tática de defesa. Ele iria tentar mostrar que era um homem desapegado
à vida, portanto capaz de tudo.
Ah! Ele iria por para foder. Todos o
escutavam calados. Ele falava e andava de um lado para outro agitado.
No emprego, fala, vou encarar o meu patrão,
acabarei com aquela peste, cabeça gorda desgraçada de uma figa.
Rodou e voltou falar em suicídio.
- Quem tem uma gilete aí?
O trabalhador, vestido com um calção, acordou
e não compreendeu porque o menino queria suicidar.
- Para que você quer uma gilete?
- Vou morrer. Vou me acabar, morrer, cansei. Saco
cheio. Entendeu?
O menino foi deitar-se num canto. O
trabalhador de calção ficou olhando-o e depois foi dormir também. O trabalhador
fora preso por causa de uma briga com a mulher enciumada.
Chega mais um menino. O primeiro acorda e os
dois se põem a contar valentias. O negro da escola pergunta se amanhã com todos
acordados, eles conseguirão manter esse tipo de papo sem se complicarem. É
difícil saber dentre os que estão dormindo os que desafiarão os meninos.
Chega outro preso. Gordo e alto. É um dos
três que tem paletó. O gordo é alto, tem os dentes para fora e um sorriso
fácil. Lembra o Zé Adão, que, segundo o Milton, por causa dos dentes para fora,
o que é duro ao Zé Adão é não rir.
Não rir é impossível, o gordo não consegue
fechar a boca. O gordo está falando baixinho e ininteligível. Pedem para que
ele fale mais alto. Ele é dono, sócio de um bar e trabalha a noite.
- Dou tudo para a mulher. Trabalho de noite e
ela me fez uma safadeza. Eu a encontrei, flagrei os dois. Aí eu perguntei ao
sujeito, poxa cara por que você fez isto comigo? Ele respondeu qualquer coisa,
quis matá-lo. Pensei e me contive. Apenas o empurrei para que sumisse da minha
frente. O sujeito caiu, os óculos e o rote quebraram. A coisa ficou preta pra
mim, a cana me disse que aquilo é agressão.
O gordo encolheu as pernas, passou as mão no
rosto, a pele das suas mãos estavam cheias de hematomas, como se ele tivesse
esmurrado para valer uma parede.
- Eu sustento a mulher e o outro vai lá,
folgado, tranquilo, aproveitar a sopa, nadar na sopa, isto não. Ela é nova,
flor da idade. Eles vão me pagar. Eu mato e fujo. Esta é a primeira e última
vez que eu vou preso. Que mulher louca! Por que ela fez isso? Será por
dinheiro? Ela pensa que a juventude não acaba. Ironia, não é? Fomos presos os
três, eu, ele e ela. A polícia trouxe todo mundo. No final das contas, eu
fiquei. Os dois foram embora. Veja só, os dois, ele e ela anh!? Eu fiquei atrás
das grades. Os dois foram embora juntos. Que merda, não é? Hem?!
O gordo continuou no canto com as sua imagens
de amor traído e de ódio, a preparar sua vingança.
*
Duas eram as opções, ficar acordado e dormir
enquanto todos estivessem acordados, na manhã seguinte, em algum lugar que
batesse sol ou deitar no chão frio.
Duas pessoas apenas se mantinham acordadas. O
moço, que estava sentado na extrema esquerda dos quatro, passou a caminhar.
Esperava as badaladas de meia em meia hora. Cinco, seis, tossiam. Vez ou outra
conversavam o Gordo, Ernesto e Tarcísio. Os presos depois de terem dormido, no
máximo um quarto de hora, acordavam, como se tivessem combinado o momento exato.
Ernesto controlava a hora pelo relógio da Igreja da Lagoinha,
Dois, três levantavam, faziam um círculo e
conversavam ou continuavam a conversa anterior. Era mais um papo de cinco, dez
minutos e depois dormiam novamente.
Subitamente, do meio daqueles corpos mal
arrumados, uma pessoa erguia-se sonâmbulo para cair em outro lugar.
Outros mudavam de posição como se procurassem
um lugar macio ou quente no marmorite. Protegidos da luz que vinha do pátio e
garagem, nove dormiam debaixo do janelão de grades que ocupava toda a metade
superior da parede fronteira ao pátio. O vento praticamente não incomodava os
privilegiados que conseguiam um lugar debaixo da janela.
A porta abriu novamente, Ernesto era o único
que estava de pé. Entrou um preso sem camisa e descalço, trazendo um blusão nos
braços.
O carcereiro falou para o preso.
- Agora você vai tomar banho, ouviu?
Em seguida, o carcereiro fechou a porta acordando um bocado de gente.
De fora o carcereiro repetiu a ordem.
- Vá tomar banho, tem uma torneira aí.
O carcereiro dissera isto como mofa, gozação.
É uma característica da autoridade ser irônica no uso do poder. Tanto que
ninguém esperava o que o rapaz fez. O rapaz tirou a roupa, ficou nu, e procurou
a torneira. Tomou banho. Os meninos riam. O gordo ria. Tarcísio ria. Também no
rosto deste rapaz, que tomava banho, havia o medo e o pavor. Medo de que? Pavor
de que? Quem podia causar-lhe tanto medo? Os policiais? Os outros presos?
Aquela noite? Ou o que ele tivesse feito? Depois do banho, ele veio deitar-se
no chão. Disse que o carcereiro prometera conseguir-lhe uma cama se ele tomasse
banho.
- Tomei banho, cadê a cama?
Um dos meninos, o da calça molhada, bateu a
mão no chão.
- Olha aqui a cama, veja como ela é macia.
Veja, como a minha mão pula. Isto é um big colchão de mola.
- Colchão de Ortobom, bom para as costas.
- Este aqui é ótimo para a canga, no outro
dia a cangalha cai direitinho.
O rapaz que tomou banho não conseguiu dormir
o resto da madrugada. Ficou o tempo todo perto da porta, murmurava coisas
desencontradas.
- Minha tia está aí – e procurava uma melhor
posição para colocar o ouvido. Ela veio me tirar. Minha mãe não merece isto que
eu fiz. Tentaram me matar. Ele apontou a arma para mim. Eu avancei, não
acreditei e fiz uma loucura. Parti o cara. Foi fácil, não sei como, eu tomei a
arma dele e... não sei mais... não sei... minha tia.
Ouviu passos no corredor chamou por André.
- André?
Em seu rosto jovem e calmo, magro, nenhum
sinal de perturbação muscular, apenas os olhos que eram incrivelmente tranquilos
e otimistas, raramente apavorados.
Chamava por André, não obtinha resposta e
mais uma vez procurava captar os sons do corredor.
O dia começou a clarear. As luzes da cadeia
ainda estavam acesas.
Chegou um outro, este trazia uma nota de
culpa, auto de flagrante. Processado no artigo 115 do Código Penal. Negro,
maltrapilho, um enorme sapato de bico fino, blusa e camisa verde, jeito de velho,
olhar manso e calmo. Parecia com uma pessoa conhecida. O negro meio corcunda
era um rapaz ainda novo, entre vinte e vinte e cinco anos, calado e humilde.
Veio para a cadeia, preso em flagrante, tentativa de homicídio, esfaqueou um.
- Como ficou o sujeito?
- Me disseram que o cabra está fecha não
fecha.
- Deve ser mentira Eles querem te apavorar,
certamente.
O negro de sapato de bico fino mostrava a
nota de culpa e enquanto os outros liam, ele observava as contrações faciais
daqueles que liam.
- Este negro me lembra um amigo, disse
Ernesto. Lembra-me o Elson, um velho amigo, que ficou perdido no norte, um
pouco acima do rio Amazonas, numa daquelas bacias secundárias.
Esse negro do artigo 115 não sabe ler, mas
percebe muitas coisas, percebe muito mais do que a leitura poderia lhe
proporcionar. Ele lê no comportamento dos outros, nas reações, ele lê através
do entendimento dos outros. Será impossível enganá-lo se o Gordo quiser mentir
ou diminuir o significado de uma nota de culpa da prisão em flagrante.
A manhã se completava, os sons chegavam Apagaram
a luz.
*
Durante a noite, um moço alto, forte, com
fisionomia agastada, traços harmoniosos, levantou-se uma porção de vezes para
ir ao banheiro. Antes da chamada, quando todos os presos estavam de pé dispostos conforme as exigências dos
carcereiros, perguntei-lhe o que houve.
Seu nome é Lourenço, cearense, garçom em São
Paulo. Veio a Minas para a inauguração de um restaurante.
- Eu não queria vir, mas sou um curioso, um
xereta. Quis aproveitar a oportunidade de conhecer Belo Horizonte ganhando
também algum. O dono do restaurante quando esteve em São Paulo me contratou sob
palavra. Era só chegar e teria trabalho
para mim.
Seu azar foi que ao deixar sua pasta James
Bond em um canto do restaurante, para esperar o proprietário, roubaram-lhe
todos os documentos e mais 250 cruzeiros. Contrariado pelo barulho que Lourenço
aprontava, o dono do restaurante chamou a polícia. Em suas investigações a
polícia desconfiou de Lourenço.
Tudo começou com uma gozação. Eis uma
espécime rara de cearense, um cearense sem cabeça chata! Dissera um
investigador. Daí para a dúvida quanto a naturalidade e quanto a honestidade de
Lourenço.
Um cearense que não tem cabeça chata, que não
é pequeno, desaforado, aí a polícia começou a raciocinar. As premissas e os
indícios que sempre acompanham o raciocínio da polícia são sempre iguais a
estes. Lourenço tornou-se um suspeito.
Em pouco tempo já o consideravam um ladrão.
Assim o penderam. Era ladrão e se não fosse ladrão não seria cearense. Havia
alguma coisa atrás daquela identidade ocultada, pois para a polícia já era
pacífico que Lourenço não era cearense.
- Tem linguiça e muito caroço nesse angu – dissera o investigador
ao dono do restaurante para justificar porque eles levavam Lourenço.
Lourenço tinha pescoço e um polícia chegou a se referir a um
exemplar de cearense citando um presidente militar do país. Outro policial se
referiu à maneira como o presidente dava nó na gravata todas as manhãs.
Levaram Lourenço para a Delegacia de Furtos e Roubos, antes de
chegar a resposta pelo telex sobre a identidade de Lourenço o pau já havia
começado. Veio a resposta, os policiais ficaram embasbacados, Lourenço era de
fato cearense e do sertão. E agora? Se é cearense passará a ser ladrão e assim
começaram os interrogatórios infalíveis.
Um policial se adiantou para Lourenço.
-
Você vai ter que explicar tudinho para a gente, como conseguiu
aquelas duas malas de roupa.
-
Onde você roubou aquelas roupas? Gritou outro policial.
-
O que você está fazendo que ainda não tirou a roupa. Fique nu.
Daqui a pouco nosso papo vai esquentar.
Lourenço não entendia nada
daquilo. Esses homens ficaram loucos.
- Tire a roupa logo.
-Olhem só o tamanho do pintinho
dele.
- Coitadinho.Isto não faz mal a
ninguém.
-Agora nunca mais ele vai poder
tirar uma, nós vamos esbagaçar isto.
- Anda filho da puta, vai dizendo
onde você roubou.
- Roubei o que?
- Você é um ladrão refinado.Não
vai querer falar, hem?
- Cearense em São Paulo só se dá bem
por isso: roubam.
Aproximou um policial e propôs um
acordo com Lourenço. Ele falava. Não haveria processo, as coisas seriam
distribuídas com a os policiais amigos.Tudo ficaria limpo. Quem sabe se ele não
iria poder ficar aqui em Belo Horizonte. O campo era promissor para gente
inteligente como ele.
Lourenço falou que ele poderia
até roubar mas que de fato não havia roubado até então.
O policial se afastou, apanhou
uma borracha de pneu de caminhão.
Lourenço acordou na cela, não
podia virar o corpo. Tentou tirar a mão que estava presa dormente sob o corpo e não conseguiu.
Todos os seus movimentos eram
dolorosos. Estava nu. Quantos chutes levou na cabeça? Não se lembra. E se os
chutes o deixassem maluco? Pensando, ele estava. Que sujeito covarde aquele! O
pinta segurava a cabeça de Lourenço e enchia de tapas. Quantos eram? Contara
cinco, mas deviam ser mais, vinha mão, perna, braço e pé de tudo quanto era
lado.
Não havia dúvida, aquilo era
muita covardia. Se ele saísse, se ficasse inútil, iria atrás de um por um,
pegar um por um e fazer as sacanagens mais violentas possíveis, seria cruel,
mataria todos depois de muita monstruosidade.
Ele teria coragem para isso.? Não
sei. Mas como a polícia tem? Lourenço não sentia o pênis, seu ânus parecia ter
sido queimado por cigarros.
Abriram a porta, Lourenço viu
entrar o carcereiro que falava com voz branda, dizia que ele, como homem e como
polícia, condenava aquele comportamento dos policiais daquele plantão. O
carcereiro aplicou-lhe uma injeção e deixou dois analgésicos para Lourenço.
Dois dias depois de estar
totalmente recuperado, mandaram-no embora.
Lourenço pediu suas malas.
- Malas?!
O carcereiro olhou para Lourenço
não acreditando no que ouvia.
-
Exatamente, as malas, as minhas malas, as minhas roupas.
O policial passou as mãos no
cabelo. Inacreditável! O moço ganhando uma boca daquelas de escapar sem
processo, ao invés de ir embora, estava procurando complicações com a polícia.
Lourenço viu chegar dois policiais vestidos com as suas roupas.
-
Senhor, aquelas duas malas me pertencem, eu quero as minhas malas,
vou falar com o delegado.
-
O delegado não está, só chega mais tarde e, mais ainda, não
sabemos a hora em que ele chega. Principalmente quando acontece como agora que
ele saiu para uma diligência.
O carcereiro ficou calado, depois
voltou-se para Lourenço.
-
Rapaz, eu quero ser seu amigo, sou um policial velho, que está
aqui neste posto porque não quer se envolver com histórias sujas, e elas há,
dez, vinte por dia. Tenho mais de vinte anos vendo covardias, é um conselho que
eu te dou, vá embora. Não há para quem apelar. As outras autoridades são piores
do que estas, são mais sutis. Esqueça as malas, esqueça as roupas. Você é um
moço trabalhador, conseguirá outras.
-
Até logo.
-
Isto meu rapaz, vá embora, vá com Deus.
Na Secretaria de Segurança do
Estado, Lourenço contou toda a sua história, pediu um exame de corpo delito no
Instituto Médico Legal. O delegado, fumando um cigarro atrás de outro, ouviu
toda a historia de Lourenço.
Os únicos movimentos do delegado
eram em torno do cigarro e para jogar as cinzas em qualquer lugar, para acender
um novo cigarro, para soprar um jato de fumaça para o alto, para apertar a
bagana no cinzeiro.
Garantiu a Lourenço que suas
coisas seriam recuperadas, falou dos propósitos de moralização e do sentido de
colaboração que aquele depoimento trazia. Lourenço receberia peça por peça. Era
uma quarta-feira, de manhã quando fora solto pela Delegacia de Furtos e Roubos.
Saiu da Secretaria de Segurança e
entrou no bar mais próximo, não tinha nada no bolso, nem dinheiro, nem
documentos, pensou o que deveria fazer, voltar ao restaurante. Nunca voltaria
naquele restaurante, iria para São Paulo. Como? A garçonete colocou uma xícara
de café diante dele.
-
Não quero nada não, moça. Muito obrigado.
- Se não quer nada, faça o favor de se
retirar. Aqui não é lugar de descanso.
Saindo da Secretaria, Lourenço
lembra dos modos do delegado, ele não confiou naquele delegado. Com fome,
tentou inutilmente se concentrar para ter uma ideia de como conseguir comida e
tomou uma decisão, sair imediatamente desta cidade, de qualquer jeito, de
carona, a pé, enfim sair.
Uma radiopatrulha encostou.
-
Seus documentos por favor?
Ele não esboçou nenhuma
explicação. Sorriu e se conformou com a sorte. Veio a imagem da fumaceira no
gabinete do delegado na Secretaria e repetiu, dentro do camburão, as palavras
da autoridade.
-
Inegavelmente, inegavelmente, tais fatos são absurdos. A corrupção
da nossa polícia nos entristece.
E o delegado amassava a bagana.
Conduzido direto ao Departamento
de Investigações foi colocado à disposição da Vadiagem. Passou a ser mais um
desesperado, embora calmo, não ameaçando revide, falando pouco, não se
referindo aos policiais com intenções assassinas, apenas tinha um riso até a
metade.
-
Não vou matar ninguém, não vou tornar-me um criminoso, que esta
seja a última vez, a primeira e a última vez que venho a Belo Horizonte. Juro
que nunca mais volto. Foi tudo um grande azar. Todos estamos sujeitos a isso,
todos nós que deixamos os nossos familiares e viemos para a cidade grande, todos nós que somos pobres,
todos nós que lutamos e trabalhamos duro.
Lourenço apontava os outros
companheiros de cela.
-
Aqui, sim, entra tudo quanto é espécie de pessoas ladrões e
bêbados, vagabundos, assassinos, tarados, maconheiros, inocentes, estúpidos,
loucos e os que estão enlouquecendo.
Aquelas pessoas sujas causavam
repugnância a Lourenço, que se afastava
de todo mundo. Ele não escondia isso para ninguém. Um sujeito veio conversar
com Lourenço, falava alto sobre a sua prisão, quando o sujeito topou com o riso
de desinteresse de Lourenço. Metade de
uma palavra o cara engoliu e saiu sem muita conversa. Este corte rápido da
palavra encerrando a conversa, foi
presenciado por todos. Todos olhavam para os dois esperando para ver o que ia
dar. O sujeito teve medo, afastou-se sem virar as costas para Lourenço e
procurou um lugar para sentar, batendo com as costas na parede e deixando a
perna sobre as coxas de um rapaz.
O rapaz passou as mãos na perna
do sujeito e disse.
- Moço, suas pernas são macias.
- Todos trazem doenças, continuava Lourenço, sujeiras e parasitas,
muquiranas, chato. Isto é uma pocilga abandonada.
Lourenço enfiou as mãos no bolso e ficou
caminhando para lá e para cá, indiferente ao homem que humilhara.
O
gordo queria saber quantos dias de prisão dava o artigo 115, prisão em
flagrante. Ninguém sabia. O gordo mesmo respondeu.
-
O artigo 115 deve dar 115 dias de cadeia. Artigo 115, 115 dias. Mas se alguém
fizer alguma coisa, a gente pode sair antes. Ninguém sabe da minha prisão,
ninguém da minha família. Amanhã, aliás, hoje mesmo, meu sócio ficará sabendo e vem para
cá. Ele me tira da prisão.
Os
cigarros que apareciam eram distribuídos igualmente entre todos os fumantes.
Nunca acendiam dois cigarros ao mesmo tempo. Era sempre um e este rodava por
toda a cela. As baganas rolavam de boca em boca, pela boca de umas vinte
pessoas, que a fumavam até queimarem os dedos e os lábios.
Um nordestino queixava-se da possibilidade de
ter que passar o natal na cadeia. Seu nome era Ribamar, usava uma japona,
dizia-se descendente de índios, tinha o rosto marcado por bexigas e talhes de
navalha. Sua voz era forte. Era do Maranhão, deu o nome de sua cidade e dos
seus avós índios. O rádio em uma casa comercial da Lagoinha, ligado a todo
volume, tocava um samba de Martinho da Vila.
-
Martinho da Vila é malandro, ele sabe viver – disse Ribamar.
Ernesto e o descendente dos
índios bateram um papo na porta da cela. Ernesto vivera em Cerrito, em
Montevidéu, e Ribamar já roubara em Pocito.
Qual foi o seu caso, perguntou
Ribamar.
-
Morte.
-
Empreitada?
-
Também mato por empreitada, este agora foi vingança.
-
Por quê?
-
Os caras queriam abusar de minha mulher, numa casa de mulheres.
-
Era bonita?
-
Não.
-
Estou numa fria, disse Ribamar, a Polinter mandou que me
segurassem, agora nem que o diabo nasça estes desgraçados me soltam. Ouvi um
zumzum, parece que é qualquer coisa lá fora. Em Buenos Aires, andei metendo a
mão demais por lá, fiz limpeza adoidado. Interessante é que não deixei rabo,
fiz tudo na limpeza e me surge esta. Acho que tudo não passa de uma sugesta, se
colar eu me perco e entro na fria. A coisa é um jogo. Vai ver os caras pescaram
no voo e querem pegar a fruta de qualquer jeito. Eles estão enganados, conheço
as manhas. O negócio é não bolinar as ideias, aceitar o natal na cadeia, sem
mulheres, roer sonhos. Manjo este povo.
O carcereiro chegou até a porta
do xadrez, bateu com uma vara de ferro contra as grades.
-
Atenção, todos encostem na parede. Vai começar a chamada.
8.5.2
31.5.02
A caminho de Neves
Uma nova
temporada começaria em que tínhamos algumas certeza. A primeira seria a
recuperação física com tratamentos programados no Hospital das Clínicas da UFMG. Logo fui
alojado em uma das celas da enfermaria. Éramos os primeiros presos políticos
transferidos de Linhares para a Penitenciária Agrícola de Neves.
Lá já estava
Márcio Lacerda, o Gringo.
A segunda
certeza, teríamos acesso a uma biblioteca e uma boa surpresa. A biblioteca
abandonada, era, entretanto, dotada de um grande acerco e de muitos bons livros.
Trabalhando
na área de saúde da penitenciária, haveria espaço para nossos estudos e tempo
para leitura.
Trabalhávamos
na farmácia, onde predominava a manipulação de medicamentos, sob a orientação
do farmacêutico formado ela UFMG, seu Machado.
Os outros
dois presos políticos eram oriundos da Polícia Militar e ficaram isolados do
nosso convívio.