A minha caminhada
Rufino Fialho Filho
Vivi num tempo em que fugir
era, em quase todos os momentos, condição de sobrevivência. Ou fugia ou morria.
Ou fugir ou ser preso. E a prisão era a tortura e a morte. A sobrevivência
dura, difícil e, quase sempre, impossível.
A arte da fuga era
imperativa, aprender a fugir, estar sempre pronto para escapar, uma necessidade
como o alimento de todo dia.
Entre as muitas fugas, a mais
longa foi feita no percurso Juiz de Fora, Belo Horizonte, São Paulo, Porto
Alegre, Santa Maria, Chuí, onde fui preso e transferido na mesma noite para Santa
Maria e depois Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, onde fiquei preso mais de 30
dias, numa cela isolada, vigiado por um soldado suicida da Polícia do Exército.
Foi a fuga em que perdi a
parada. Capturado, iniciei uma outra arte para a sobrevivência, a arte da mentira, num jogo de gato e
rato, onde teria que ser sempre o perdedor. Ali, ganhar significaria morrer,
não poderia cometer a burrice da criança que quer ganhar todas, desde jogo de
bola de gude, partida de futebol e a menina mais bonita do lugar.
Neste jogo de sobrevivência,
onde a mentira tornar-se-ia uma arte, perder fazia parte essencial do jogo,
assim ser capturado na mentira, perder, no jogo da investigação e da
inteligência, fazia parte da estratégia.
O policial tinha que
apanhá-lo mentindo, era a jogada da “Mentira de Pernas-curtas”.
Tinha a mentira de
pernas-curtas uma medida, pois não se podia abusar da inteligência do outro no
jogo de polícia e bandido, onde além de ser sempre o bandido, o derrotado, você
também era um prisioneiro totalmente dominado e submetido ao poder policial do
torturador, poder sem limites, poder sobre a sua própria vida e integridade
física.
Ele tanto podia te
arrebentar, matá-lo, machucá-lo como podia esquecê-lo, sem água e comida, no
fundo de uma micro-cela, sem nada, sem água, sem vaso sanitário, em meio a
fezes e urina, as suas próprias fezes, as sua própria urina, dois, três dias,
uma semana, trinta dias sem tomar banho, sem nenhuma higiene.
Ali, numa cela da PE de Porto
Alegre, da Polícia do Exército, do Exército Brasileiro, em um quartel que,
tenho notícia, teria sido demolido, ao lado da escola de engenharia da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul;
ali, naquela cela, cela de
castigo, dentro de outra cela;
ali, eu li um único livro, o
livro que escolhi para me acompanhar aqueles 30 dias, que se tornaram 45 dias,
de acordo com as regras dos IPMs;
ali, li o Ulysses, de James Joyce. Naquela prisão
gaúcha, encontrei a salvação.
Aconselho, bom, uma sugestão a
quem quer ler uma grande obra, como Ulysses, a experimentar este isolamento.
Se possível, não em uma
prisão.